quarta-feira, 24 de março de 2010




Há quem não goste de ser tiete

* Por Mara Narciso

Nós tínhamos apenas 16 anos e tantos anos e sonhos para viver. E parte de todas as tardes andávamos pelas ruas centrais de Montes Claros. Era aquele ano perdido em que não há compromisso com coisa alguma, apenas ser jovem e sonhar. O vestibular ainda seria disputado em mais de um ano adiante. Era um tempo em que a repressão e o moralismo exacerbados nos aprisionavam, mas éramos jovens e isso nos bastava. Íamos a escola de manhã, e após obrigações, era hora de nos juntarmos para filosofar, como gostávamos de dizer. O grupo era formado por Serginho, Dulce, Cristina e eu. Todos os dias do segundo semestre de 1972 estávamos juntos tocando violão, cantando, desenhando, lendo revista de decoração e moda, conversando sobre os livros que líamos.

Serginho era um jovem moreno, de cabelos pretos e lisos, sobrancelhas cerradas, olhos espremidos, muito bonito, inteligente, sensível, e cheio de irmãos. O pai dele tinha uma fábrica de sapatos. Ele usava uma espécie de bota cano alto com bico metálico mais elevado, e que ele chamava de bate-bute. Tinha estatura média, compleição forte, com ombros largos e sempre de camiseta justa, calça muito comprida arrastando no chão, como era moda na época. Das três meninas eu era a feia. As duas outras, Dulce e Cristina, eram meninas bonitas.

Nós estudávamos no Colégio Marista São José, e Serginho na Escola Normal. Depois das aulas, de vez em quando ele ia a minha casa, perto do meu colégio, mas noutras vezes eu passava na porta da casa dele, na Rua Padre Augusto e íamos à casa de Dulce, mais ao centro da cidade, na Rua Dr. Veloso. Cristina morava perto dele na Rua Coronel Antônio dos Anjos, enfim, nós quatro morávamos perto, e as distâncias eram cobertas a pé. Só andávamos de carro para passear.

O nosso assunto nunca se esgotava. Como todo grupo de jovens, falávamos sem parar, e dávamos muitas risadas. Dulce gostava e entendia de decoração. Ouvíamos músicas MPB e baladas internacionais num gravadorzinho PHILIPS. Outra hora Serginho tocava violão e tinha preferência por músicas românticas em inglês. Também lia e contava sobre os livros de Hermann Hesse, especialmente Sidarta, que ele leu, ficou impressionado, e falou dele conosco. Fomos ao Pentáurea Clube nalgumas dessas tardes, e também a matinê, mas o que gostávamos mesmo era de ficar conversando na casa de Dulce.

Interessante é que nunca houve interesse de nenhuma de nós em namorar Serginho, rapaz muito requisitado pelas moças de então. Para colorir ainda mais as minhas lembranças, certa vez Serginho resolveu desenhar um retrato de Dulce, o rosto dela em lápis preto, e ficou muito parecido. Ainda hoje o revejo fazendo aqueles traçados. Era a primeira vez, na nossa frente, que resolvia desenhar a sério, e não apenas rabiscar com caneta, aleatoriamente, como de vez em quando fazia nos guardanapos.

Os estudos e os casamentos de cada parte acabaram por nos separar, mas há uns cinco ou seis anos eu o procurei querendo comprar um quadro. Nessa ocasião, Sérgio Ferreira, artista plástico reconhecido e valorizado, além de cantor e compositor com discos gravados, produzia a arte que eu admirava e queria ter. Fomos, Dulce e eu a casa dele, e fizemos um agradável passeio ao passado. Entre emocionados e felizes, vimos as últimas produções e comprei uma delas, bem grande, que retrata três bustos nus com turbante, duas mulheres e um homem, que eu acredito tratar-se do seu auto-retrato, e o tenho em minha sala de jantar. Depois ele me deu dois quadros menores e gêmeos que retratam um homem e uma mulher, pintados de branco em fundo preto, que estão em meu consultório e são muito elogiados por quem tem o privilégio de vê-los.

Ouvi na Rádio Unimontes que os quadros de Sérgio Ferreira estavam em exposição, e fui vê-los assim que pude. E o que vi? Aquele traço e cores marcas registradas, aqueles assuntos típicos e outros nem tanto, que vão e voltam como os temas sacros, aquela pintura marcante e bela, geralmente alegre em cores terrosas. Telas de algumas fases como a última ceia, São Francisco, colagens, circo, santas sob véus, raios feito vidros quebrados em leque, e ainda bailarinas, mulheres africanas e gatos. Nessa mostra não havia flores. Gosto de tudo, e não quero parecer redundante. Preciso escolher uma delas, e a que me encantou foi a das mulheres, que imaginei tratar-se de pessoas numa igreja, entre bancos de espaldar alto, mas eram motivos africanos entre mulheres, e o outro, o dos gatos, felinos dengosos e modernos, que me atraíram e conquistaram com sua cor azulada. Quero levá-los para minha casa.

* Médica endocrinologista, acadêmica do oitavo período de Jornalismo e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”

6 comentários:

  1. É muito bom presenciar o sucesso de uma pessoa
    principalmente quando somos testemunhas de sua
    jornada.
    beijos

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  2. Pois então, Mara, leve os quadros de Serginho para casa.
    Como disse a Nubia, é muito bom acompanhar a trajetória vitoriosa de um amigo.

    Beijos

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  3. Muito bem o texto Mara, gostoso saber que seu anigo teve êxito! Abraço!

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  4. Meninas, obrigada pelos comentários. Estou querendo levar os gatos, que valem quanto medem, mas hoje não tenho os 3.500,00. Preciso esperar um pouquinho.

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  5. Oi, Mara. Gosto muito de tudo o que se relaciona com volta no tempo. Logicamente, achei uma delícia o seu texto. Se não me engano, um ou outro membro do Clube da Esquina (não me lembro qual ou quais) era(m) lá de Montes Claros, ou estou enganado? Aproveito para parabenizá-la também pela entrevista. Um grande abraço.

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  6. Sim Marcelo, Beto Guedes é do Clube da Esquina e nasceu em Montes Claros. Agradeço a sua manifestação. Muito obrigada!

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