terça-feira, 30 de março de 2010




Amor nas pontas dos dedos

* Por Risomar Fasanaro

E
la lhe enviou um e-mail reclamando que ele já não lhe escrevia com a constância de antes. Ele respondeu dizendo que ela lhe enviava e-mails demais. Em outra mensagem ela insistiu dizendo que antes ele respondia a todos seus e-mails. Veio outra dele: “você sofre de incontinência internética”.

Ela achou graça no termo. Ele era uma das pessoas mais criativas que ela já conhecera. Estava sempre inventando algo. Os dias se passaram e ele não lhe escrevera mais. Ela tornou a reclamar, discutiram por e-mails, os ânimos se acirraram. Ela se magoou.

Sim, tinha consciência de que lhe enviava muitas mensagens. Mas a maioria era de encaminhamento de textos que poderiam lhe interessar, e desses ela não esperava respostas mesmo, mas e aqueles em que lhe perguntava algo, e ele não lhe respondia nada?

Levantou-se do computador e foi até a área de serviço lavar umas roupas. Rememorava a discussão com ele. Estava triste. Ensaboava os decotes da camiseta à mão, antes de colocá-las na máquina. Em uma delas havia uma mancha, e por mais que tentasse retirá-la, não conseguia. E ainda precisava fazer o almoço. Trabalho repetitivo, monótono. Embora fossem tarefas que realizava esporadicamente, cansavam.

É... ficara muito tempo no computador. Talvez ele tivesse razão. Riu novamente lembrando-se dos termos que ele usava, mas logo o riso congelou, sentiu a boca seca. Lembrou-se da música do Chico “todo dia ela faz tudo sempre igual...” A dor de ser mulher. Por mais que os séculos avancem, ainda há muito por fazer... Há uma encruzilhada, e parece que quando o caminho se bifurca cada um segue para um lado. Quando homens e mulheres se encontrariam? Onde as paralelas se encontrariam?

No ultimo e-mail ele fora por demais direto. Sim, ela ficara magoada, e lhe respondera com a mesma dureza. As palavras quando ditas frente a frente, se têm muitos elementos para analisar. O tom de voz, a expressão dos olhos, da boca, tudo em um rosto completa o que as palavras dizem, às vezes dizem até mais. Mas quando escritas são palavras nuas. Você não sabe o que as reveste.

Pensou em tudo isso. Em como a escrita diz pouco do que sentimos. De como elas podem pesar se nos dizem o que não queremos ler, ou de como se tornam aladas quando nos revelam o que nos faz feliz.

Não conseguiu tirar a mancha da camiseta, e colocou as roupas na máquina assim mesmo. Sentiu-se um lixo. Uma mulher que não sabia sequer tirar uma mancha de uma roupa.

O filho estava lendo na sala quando, alertado por um ruído estranho, foi até a área de serviço. Chegou a tempo de ver a mãe escorrendo pelo ralo embaixo do tanque de lavar roupas. Só a parte superior da cabeça ainda não escorrera. Tentou puxá-la pelos cabelos, mas não conseguiu.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

3 comentários:

  1. A solidão empurra as pessoas para o universo
    virtual, parece ser mais seguro.
    É um mundo onde você vê as cores que mais gosta
    e te proporciona conforto, porém, sem o cheiro
    da terra molhada, sem o calor do sol e sem abraços.
    Esse texto é um alerta, pois vi de perto pessoas surtarem após ficarem um dia sem internet.
    Parabéns Riso.
    Beijos

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  2. Muito bom, Risomar; internet, solidão, um certo escapismo...ótimo! Beijos!

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  3. Entrar pelo ralo pode ser uma alternativa para quem está sem saída. Aprovei a imagem de palavras nuas. Ler frases de despedida pode ter efeito mais devastador do que escutá-las. O efeito é cruel. Gritos de fim de romance podem ser menos dolorosos de ouvir, do que ler essa mesma despedida. Quem escreve, ou seja, você Risomar, sabe do que fala.

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