terça-feira, 19 de janeiro de 2010







Um mundo barroco

* Por Risomar Fasanaro

Início do ano. Tão novo e trazendo tantas desgraças... Sou levada a pensar na transitoriedade de todas as coisas. Lição que a natureza nos ensina diariamente e as recebemos com ouvidos moucos, com olhos de cegos.

E são tantas essas lições... As estações do ano que duram apenas três meses e já partem; a água do rio sempre a correr, sendo sempre outra a cada fração de segundo, a nada se prendendo; as nuvens a formar desenhos que logo se transformam em outros, em outros, infinitamente.

As ondas do mar naquela repetição sem fim, sempre outra, o sol que nasce e se põe todos os dias, e nossa imagem no espelho a nos mostrar que já não somos o que fomos ontem, nem o que seremos amanhã. Nada fica, nada possuímos, estamos sempre de partida, sempre de chegada. Daí o absurdo de acharmos que temos algo, temos alguém, quando estamos sempre tão nus como aqui chegamos. Exagero? Basta prestar atenção aos noticiários.

Recorro aos poetas barrocos, aqueles que nos legaram alguns textos sobre o que significa essa impermanência das coisas. Abro um livro de um dos meus poetas prediletos, Gregório de Mattos Guerra, e releio com certa tristeza, é verdade, mas tentando entender e me conformar com o que é inevitável.

Entre os inúmeros poemas do autor baiano do século XVII, pensei em reproduzir estes dois que traduzem de maneira clara um dos princípios que norteavam a literatura barroca. E o que sobressai nos poemas? Imagens do que é fugaz: o dia, a rosa, a alegria, a beleza... Atente-se para o segundo poema onde as metáforas nos encaminham para tudo que é fadado a um fim: rosa, planta, nau. E enquanto nas três primeiras estrofes ele enaltece cada um desses elementos, na última nos revela o final trágico de cada uma, como a provar que nada é eterno, embora em alguns casos fosse esse nosso desejo. À rosa se destina a tarde quando fatalmente murchará, à planta o machado que a cortará e à nau a penha.


MORALIZA O POETA NOS
OCIDENTES DO SOL A INCONSTÂNCIA
DOS BENS DO MUNDO

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a Luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.
Começa o mundo enfim pela ignorância,

E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância


*******

Ou esta outra, do mesmo Autor:

É a vaidade, Fábio, nesta vida
Rosa, que de manhã lisonjeada,
Púrpuras mil, com ambição dourada,
Airosa rompe, arrasta presumida.

É planta, que de abril favorecida,
Por mares de soberba desatada,
Florida galeota empavesada,
Sulca ufana, navega destemida.

É nau enfim, que em breve ligeireza,
Com presunção de Fênix generosa,
Galhardias apresta, alentos preza:

Mas ser planta, ser rosa, ser nau vistosa
De que importa, se aguarda sem defesa
Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa?


*******

O casal proprietário da Pousada Sankai, em Angra dos Reis, poderia imaginar que tendo a vida financeira definida, a felicidade de ter uma filha jovem, linda e talentosa como era Yumi Faraci, de 18 anos, perderia tudo isso em fração de segundos? Poderia imaginar que naquela manhã do primeiro dia do ano perdera não apenas seus bens materiais, como também a filha, seu maior tesouro?

E o que dizer da tragédia do Haiti? Quando aquelas pessoas, mesmo tendo sobrevivido a vários terremotos, imaginaram que mais do que casas e vidas, testemunhariam à destruição quase que completa do seu país?

Quando nós, brasileiros, imaginaríamos que nossa Zilda Arns que para lá foi ajudar aquele país a se reerguer, a perderíamos para sempre?

Sim, é difícil conviver com aquilo que só temos por empréstimo, que é preciso estar sempre preparado para a perda, seja dos bens materiais, seja do amigo, seja da pessoa que amamos. Difícil? Sim, diria dificílimo, mas nada há a fazer além de nos conformarmos. Quem sabe o sofrimento será menor, já que é impossível não vivê-lo.

Fecho o livro de Gregório de Matos com a certeza de que muito mais veremos e viveremos.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.








6 comentários:

  1. Melancolia, tristeza, falta de esperança são a tônica de sua crônica e desse nosso início de ano. Profunda e bela análise da nossa transitoriedade Risomar. Emocionei-me.

    Destaco: "Nada fica, nada possuímos, estamos sempre de partida, sempre de chegada. Daí o absurdo de acharmos que temos algo, temos alguém, quando estamos sempre tão nus como aqui chegamos".

    Belíssimo! E ainda assim, a prepotência, a soberba, além da arrogância imperam no nosso dia a dia.

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  2. Existem vários tipos de desgraças.
    As de grande proporção, as desgraças
    particulares. Embora ninguém as queira
    é preciso saber conviver com elas.
    Belo texto Ris.
    Beijos

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  3. Barroco, sim, posto que é barro e oco. Por isso, desmorona fácil. Basta um peteleco e há já alguma história a contar. Parabéns, Ris.

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  4. Belo e reflexivo, muito verdadeiro e profundo o texto. Muito difícil lidar com a impermanência, a única certeza da vida. Parabéns!

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  5. Valeu, Risomar. Crônica madura e amadurecida. Salve.

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  6. Meus Amigos queridos

    Obrigada pelo carinho, pela delicadeza de vocês. O que seria de mim se não contasse com incentivos tão importantes como são para mim os de vocês?
    Beijos em todos
    Ris

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