segunda-feira, 25 de janeiro de 2010




Suaves prestações

* Por Daniel Santos

Desde pequeno, desde bem pequeno mesmo, ele observava de longe, intrigado, os encontros do pai com aquele homem de paletó marrom e sobrancelhas tão espessas que escondiam a chispa de avareza do olhar.

O tal queria tudo, tudo. E cobrava. Ao final dos encontros, seu velho parecia cada vez mais fraco. Devolveu, primeiro, os dentes. Depois, os cabelos, a saúde em geral até a senilidade, mas aí era já a falência.

O garoto foi entendendo aos poucos, embora a contragosto, porque lhe agradava demais a ilusão de autonomia plena. Assim, como aceitar a sujeição, mesmo que apenas relativa, a uma diretriz a ele superior?

A vida, simples concessão, era para devolver! E, quando menos esperasse, chegaria a sua vez. Só ao aceitar esse limite, perdoou o pai sempre criticado pela falta de brios: pagou sem reagir até morrer.

O filho herdou-lhe o escritório, onde, certa tarde, procurou-o o tal de paletó marrom. Pensou em escapar pelos fundos, mas ... Para onde? Com um muxoxo conformista, acenou ao finório que entrasse.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

8 comentários:

  1. E não há como sacudí-lo?
    Não há como despertar seus brios?
    O conformismo já está tão entranhado
    que levantar a voz parece-lhe tão distante...
    Sinto pena deles.
    Beleza de texto Daniel.
    Beijos

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  2. Amigo Daniel, bom dia. Belíssima e sábia sua alegoria sobre os "juros" escorchantes que esta avarenta não raro cruel, que é a vida, nos cobra, pelo simples direito de existirmos. E fá-lo do nosso primeiro instante de existência até o derradeiro, à hora da partida, que não sabemos, apenas supomos, para onde. Parabéns, meu sábio amigo!

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  3. Foram-se os anéis, os dentes, os cabelos e a vida, e quando esperávamos que o rapaz mudasse seu destino, eis que ele aceita as cobranças de outrora e as atuais, que nunca acabarão. Ou não? Alguma surpresa pode estar por vir.

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  4. Será que a morte usa "Paletó Marrom" ? É uma grande ironia, mas a única coisa certa da vida.
    Eu a vejo como um lindo vestido esvoaçante branco.
    Teria vida a morte ?
    Daniel, acho que delirei. Mas seus contos são assim. Alucinantes.
    Beijos !

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  5. Essa é pra lembrar o velho Belchior ("Minha dor é perceber que, apesar de termos feito tudo que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais..."). Põe na conta da vida, meu caro Daniel.

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  6. A dívida, que nem se sabe mais qual é e a quanto monta, passa de vitalícia a hereditária. Triste, mas verdadeiro, este moto perpétuo. Que texto, meu caro e sábio Daniel!

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  7. Gratíssimo a todos que me visitaram na segunda-feira com palavras que me deixam endividado de gratidão. Ah, quando conseguirei pagar tudo isso?!

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  8. De arrepiar, Daniel! Fico encantada com seu poder de síntese. Por pensar como é que com tamanha concisão consegue nos passar um texto tão sensível.
    Vamos, ao longo da vida reescrevedo a historia dos nossos pais, nossos filhos reescrevendo nossa historia...E é assim que um dia nossos netos ao se olharem no espelho nos reencontrarão.
    Beijos
    Ris
    Parabéns por mais este belíssimo texto.

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