segunda-feira, 18 de janeiro de 2010




Sós em definitivo

* Por Daniel Santos

Foi de surpresa. Desentocaram-nos de suas casas e eles aceitaram o confisco, na ilusão de que alguém reagiria. Mas, nada! Entenderam, então, tardiamente, que a inércia, apesar de confortável, precede a derrota.

Organizados em duas colunas, começaram a descer pela grande ladeira, silentes, em estado de perplexidade, porque nada lhes explicaram, apesar de tantos insistirem e insistirem em saber a razão daquele assalto.

Chegaram, enfim, à praça sob o exame de uma ralé invejosa que tentava discretamente tocar suas roupas caras: mais rebeldes que revolucionários, também essa gente queria encontrar a chave do cofre.

E a queriam só para si. Tanto que não devolveram o sorriso algo covarde com que os confiscados pediam conivência, pois estes precisavam de apoio para se safarem na véspera da exclusão. Mas o apoio não veio!

Sós em definitivo, aguardaram que os chamassem um a um pelos nomes. Depois, não bastasse tanto constrangimento, abarrotaram os vagões de um trem que os dispersou para bem longe dali, sem mais notícias.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.


5 comentários:

  1. Bem poderiam ser encaminhados para Treblinka, Auschwitz,Chelmno ou outro campo qualquer. Os judeus foram arrancados de suas casas e isso muito nos choca. Os africanos também passaram por semelhante processo. Os humanos são assim.

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  2. Numa dessas madrugadas sem sono, deparei-me
    com o depoimento de uma senhora sobrevivente
    de Auschwitz.
    Ela contou de uma forma bem simples e sem
    floreios como foi sua passagem por lá.
    Perdeu toda a família sendo que o marido foi
    morto na sua frente.
    Quando saiu do inferno veio para o Brasil
    se casou novamente e resconstrui sua vida.
    Não havia em sua voz nem uma sombra de ressentimento ou dor.
    Acho que ela optou pela vida e aprendeu a conviver com seus fantasmas.
    Beijos Daniel

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  3. Apesar da multidão, estamos todos sós. Na guerra, na fome, na dor, na pobreza e nas grandes catástrofes da natureza.
    Definitivamente sós.
    Longe ou perto. Alguém se importa ?
    Parabéns por mexer na ferida de maneira poética, Daniel.

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  4. A alusão clara a um campo de concentração faz ao mesmo tempo um paralelo com nossas prisões pessoais e cotidianas, com os guetos e zonas de sombra que há em nossas mentes e relacionamentos. Bastam 5 parágrafos para que Daniel diga tudo de forma brilhante e definitiva.

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  5. Obrigado Mara, Núbia, Celamar e Marcelo pelas palavras de incentivo. Melhor que isso, não há.

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