quinta-feira, 28 de janeiro de 2010




Porcos marcados com batom

* Por Marcelo Sguassábia


Havia um certo desconforto, sim, ali na cabine da máquina do tempo. Mas os cockpits dos F1 também são duros e apertados, e nem por isso deixam de levar seus ocupantes a uma realidade privilegiada – pensava ele, com o indicador direito pronto para acionar a data da aventura. O ano, o mês e o dia exato que escolhesse para ir para trás ou adiante do presente. Em segundos se desintegraria para se reintegrar em outra dimensão, quem sabe num lugar onde a morte não fosse tão definitiva ou talvez tivesse sucumbido à morte de si mesma.

Uma questão não resolvida, e à qual só teria resposta fazendo uma primeira experiência, era se manteria a forma e a idade do presente para onde quer que fosse. Poderia ser mais velho, mais novo ou permanecer nos 32. Trazia os bolsos cheios das coisas de agora, utensílios contemporâneos para embasbacar os do passado ou fazer rir os do futuro. O mais difícil já estava resolvido: a engenhoca teoricamente estava pronta pra funcionar. Foram 9 longos anos de cálculos e recálculos, que esperava recuperar com a recompensa de domar o tempo.

Tudo estaria muito bem não fosse a aparição de uma freira, vindo ofegante em sua direção.
- Você não sabe quem sou mas estou vindo de lá, para onde você foi e atrapalhou tudo. Viajei também no tempo e estou aqui para evitar sua ida.

Confuso com a intervenção, argumentou:
- Como pode provar que fui se não tenho lembrança de onde estive e, pra falar a verdade, nem escolhi ainda pra onde vou?
- Aposto que este revólver, aqui no bolso do meu hábito, também não lhe diz nada porque neste momento você não tem como saber o que já fez, mas o que fez ainda pode deixar de ser feito. Isso se você me permitir agir rápido e não fizer muitas perguntas.
- Mas se deixar de fazer o que está pra ser feito você nunca poderia estar aqui, porque o que foi feito não teria ocorrido e, portanto, não teria motivado sua vinda até aqui pra me impedir de fazer seja lá o que for. Consequentemente, eu tenho que fazer o que penso em fazer. Caso contrário você é uma alucinação, alguma brincadeira do Amílcar, o único cara que sabe que eu estava construindo a máquina.
- Se você me deixar explicar, tudo pode ficar mais fácil.
- Bom, já que você quer explicar, me diga como é que você veio pra cá com a máquina do tempo se a máquina está aqui? Por acaso a irmã desenvolveu uma réplica lá no seu convento?
- “Porcos marcados com batom”, talvez se lembre de algo assim...
- Irmã, meta-se com seu tempo que eu cuido do meu. Seja você do passado, do futuro ou muito pelo contrário. Até porque pra mim você é do presente mesmo, alguma conhecida do Amílcar fantasiada de freira.

Nem acabou de dizer isso quando viu aproximar-se alguém que deveria ser ele próprio, uns quarenta anos mais velho, careca e de barba grisalha, alertando:
- Ignore a freira, idiota. Ignore! “Porcos marcados com batom” é a senha para...

Nisso a freira sacou o revólver e disparou quase à queima-roupa naquele que parecia ser ele depois do derrame. Enquanto pensava no que faria, apareceu uma biga vindo em sua direção, com um gladiador açoitando ferozmente os dois cavalos. Sentiu o coice violento na cabeça e quando abriu os olhos estava numa cama de hospital. Olhou pela janela e viu Pilatos ao longe, lavando as mãos.

* Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”



4 comentários:

  1. Mestre Marcelo, seu absurdo talento e sua desmedida imaginação desvencilham-se do presente numa viagem por onde todos os tempos convergem para um tempo só: tudo é presente! Einstein aplaudiria embasbacado, o que faço, agora, no lugar dele, bobo e grato.

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  2. Nossa! Que viagem!
    Acho que essa é uma das aventuras que muitos
    adorariam fazer.
    Parabéns.
    Abraços

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  3. Que belo texto, Marcelo! Acompanho sempre, comento pouco, mas o de hoje está no grau de excelência, meu caro. E desse eu precisava falar.
    Abraços

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  4. A morte morrer dela mesmo foi uma solução ainda mais louca do que uma máquina do tempo. Considerações impertinentes e enlouquecidas, várias delas. E por isso mesmo engraçadas.

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