quarta-feira, 20 de janeiro de 2010




Misérias nossas de todos os dias

* Por Mara Narciso

Nós e as nossas misérias do dia a dia somos tão pequenos. Os nossos dramas individuais são ninharias que teimamos em estocar como coisas importantes. O nosso choro é mais choro, e a nossa dor pensamos ser a maior de todas. A nossa pequenez é tão imensa, que nos colocamos como centrais, para disfarçar o nosso vazio existencial. O que é a dor no varejo diante da dor universal? Um mísero nada, que não chega a ser insignificante. É menos do que isso.

Foram, estão sendo e serão impactantes as imagens da tragédia do Haiti. Estávamos aqui no nosso país esquecidos dos nossos quase vizinhos, tão parecidos conosco. Está certo que deveríamos pensar neles, mesmo antes da tragédia. Mas ainda é possível, sem pieguice, fazer alguma coisa, nem que seja disseminar a idéia de solidariedade, de humanidade, de amor. Somos mínimos, e mais mínimos nos tornamos quando não vemos e não respeitamos a dor e o sofrimento alheios.

As imagens fortes, do primeiro dia, estão em nossas retinas. Eu chorei, pela primeira vez assistindo a um noticiário, ao ver o rapaz preso pelas pernas e os amigos tentando tirá-lo dos escombros, entre muitas outras cenas semelhantes. E também fiquei impressionada com a mãe, que para mim, será a imagem fiel do desespero humano diante das forças da natureza, levando a sua filha “descanchada” na cintura, com um olhar aterrorizado, vagando pelas ruas de Porto Príncipe. E ainda o semblante de uma criança, com os olhos esbugalhados, olhando apavorada, ao longe, sozinha, em busca de algo que a console ou dê apoio, pois segurança é impossível nesse ambiente de guerra. Apenas que na guerra os homens causam a destruição e aqui não. O que podemos diante da força do nosso planeta querendo nos expulsar com sacudidas ferozes?

Os descampados viraram acampamentos, onde, por serem lugares abertos e sem construções sugerem a segurança de que não há nada para cair em cima das pessoas e esmagá-las, como na hora do terremoto. Ali estão acampadas à espera de ajuda humanitária. E dentro do nosso medo e insegurança queremos ajudar, mas até para isso somos ínfimos, diante de tantos países mobilizados para isso.

A cada dia que passa, mais terrível fica o cenário, pois vem a fome, o frio, a chuva, o mau cheiro e as doenças. Emociona ver os olhares perdidos entre desconsolados e aterrorizados dessas pessoas feridas. Para quem devem apelar em seus pensamentos?

O choque é tão grande diante desses fatos assustadores que ficamos engasgados, envoltos na nossa falta de palavras, que nos amarram feito cortinas. Ficamos no nosso canto, pensando nas nossas misérias pessoais, de forma tão egocêntrica, que nos envergonhamos quando dilatamos o nosso modo de pensar e vemos como seríamos melhores caso conseguíssemos ver mais longe, não de forma sonhadora e ineficaz, mas fazendo pelos outros o que seria bom que fizessem por nós, caso precisássemos. E quem não precisa?

* Médica endocrinologista, acadêmica do oitavo período de Jornalismo e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”






6 comentários:

  1. Mais um texto lúcido e verdadeiro da Dra. Mara. Parabéns pela análise sensata!

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  2. O seu lamento, Mara, é o de todos diante do estado de barbárie onde tudo começa antes do zero. O Haiti é uma prova de fogo de humanismo para a humanidade: ou participamos efetivamente da sua reconstrução e consolidação, ou já não seremos mais minimamente confiáveis. Belo texto de amor, doutora. Afinal, justiça social é o nome do amor no século 2l.

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  3. Obrigada Marcelo e Daniel. Antes de 48 horas da tragédia eu escrevi esse texto. O pior ainda estava por vir. Chorei com as primeiras cenas e me enterneci com o desenrolar dos fatos. Soube há pouco que houve outro terremoto de seis graus. Quando a provação desse país vai acabar?

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  4. Debaixo dos escombros e da lama
    corpos que agora só atrapalham.
    Entulham as vielas, sujam as
    avenidas. O mundo se reúne
    em prol dos que ficaram, mas
    ainda assim os abutres sobrevoam...
    Belo texto Mara, parabéns.

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  5. Todos sofremos um pouco a dor do Haiti, Mara, e não devemos ter medo da pieguice em face de tal emoção. Beijos e parabéns.

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  6. Agradecida Núbia e Evelyne. De fato os que restaram são os únicos que têm importancia agora. Diante de dramas, nós, as sensíveis, dificilmente não nos tornamos piegas. Mas esse sentimento derramado não faz mal.

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