segunda-feira, 18 de janeiro de 2010




Jogo de palavras

* Por Aliene Coutinho

Outro dia sonhei com você. Mas não era você. Eu sabia e fingia acreditar o que meus olhos não viam. Mais fácil. Mais simples. Assim, podia dizer o que nunca tivera coragem. Assim podia sentir o que quisesse, até ódio e repulsa.

Na verdade não era você. Nesse jogo de faz de conta me dei conta que podemos ser o que quisermos, na hora que quisermos, sem ter que dar satisfação, sem se preocupar com o outro, porque o outro é irreal.

Quantas vezes é só o que basta: um refúgio dentro de nós mesmos onde se pode tudo até não ser quem somos, ou nos apresentamos ao mundo. Um vão embaixo da escada, no escuro da alma, onde cabe apenas um: o eu. Talvez o verdadeiro. O que não mente. Não finge. Escancara. Grita. Cospe. Golpeia. Rebela-se. Revela-se. Atinge quem o sufoca com a mais forte direita, e direto na cara. Não sente culpa. Não lamenta. Não chora. É só. E basta.

Todos conhecem esse esconderijo. Ele existe. Está ali, sempre. Por minutos, segundos, em alguns por dias e até por toda vida. A maioria aprende desde a primeira respiração fora do ventre materno a manter esse canto sob o controle racional e da sociabilidade.

Tudo tem limite, mesmo o que existe de mais obscuro na alma. Assim tem de ser. É o que é ser normal. E nessa “normalidade” convivemos uns com os outros, nos suportamos, engolimos sapos, somos educados, conservamos nosso freio social.

Imagina se todos, ao mesmo tempo, nos libertássemos de todas as amarras e fossemos por um minuto o que realmente se quer ser, falar, mostrar-se? Piração maior que um ensaio sobre a cegueira tão bem escrito e descrito por Saramago. Nada poderia ser comparado ou suportado. Melhor diante do caos interior seja mesmo o vão escuro da alma, que nem nós mesmos temos coragem de visitá-lo à luz do dia.

* Jornalista e professora de Telejornalismo

4 comentários:

  1. Já venho me libertando de algumas amarras
    há algum tempo. Os vão escuros da minha alma
    fazem parte de mim, convivo com eles.
    Caos são como tempestades...um dia passam.
    beijos

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  2. O Lado escuro faz parte de todos, o desafio é aprender a lidar com eles! Beijos!

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  3. Quando imaginamos os destravamento da língua, sempre imaginamos verdades negativas que falaríamos e ouviríamos. E as verdades boas? As admirações contidas? Poder ser que o resultado não fosse tão ruim quanto imaginamos que seriam sem os freios que nos impõe a vida em sociedade.

    Destaco: "desde a primeira respiração fora do ventre materno a manter esse canto sob o controle racional e da sociabilidade."

    Mesmo com resquícios desse freio, achamos que a barbárie já está em curso.

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