sábado, 23 de janeiro de 2010




Angústia

Por Anton Tchecov

“Com quem a dor partilharei?...”


Anoitece. A neve graúda e úmida gira preguiçosamente ao redor dos lampiões recém-acesos e deita-se em placas ma­cias e finas nos telhados, nos lombos dos cavalos, nos om­bros, nos gorros. O cocheiro Iona Potápov está todo branco, como um fantasma. Está sentado na boléia, curvado, tão curvado quanto é possível curvar-se um corpo vivo, e não se mexe. Se toda uma avalancha se despencasse sobre ele, nem assim, ao que parece, ele acharia necessário sacudir a neve... A sua eguazinha também está branca e imóvel. Pela sua imobilidade, suas formas angulosas e as pernas retas como paus, até de perto ela parece um cavalinho de pão de mel de um copeque. Ao que tudo indica, ela está mergu­lhada em meditações. Quem foi arrancado do arado, das costumeiras paisagens cinzentas, e atirado aqui, neste ato­leiro, cheio de luzes monstruosas, zoeira incessante e gente apressada, esse não pode deixar de meditar...

Iona e a sua eguazinha não se movem do lugar já faz muito tempo. Saíram do pátio ainda antes do almoço, porém não fizeram nem uma corrida. Mas eis que a sombra da noite desce sobre a cidade. A luz pálida dos lampiões cede lugar à cor viva e o bulício das ruas torna-se mais ruidoso.
— Cocheiro, para a Viborgskaia! — ouve Iona. — Cocheiro!
Iona estremece e, através dos cílios grudados pela neve, vê um militar de capote e capuz.
— Para Viborgskaia! — repete o militar. — Mas tu estás dormindo, hein? Para Viborgskaia!

Em sinal de assentimento, Iona puxa as rédeas, em conseqüência do que, placas de neve caem dos seus ombros e do ombro do cavalo. O militar toma assento no trenó. O cocheiro estala os lábios, estica o pescoço à maneira de um cisne, soergue-se e, mais por hábito que por necessidade, brande o chicote. A eguazinha também estica o pescoço, arqueia as pernas magras e, insegura, põe-se em movimento.
— Por onde te metes, lobisomem! — ouve Iona, assim que sai, gritar de dentro da massa escura que balança para diante e para trás. — Aonde te carrega o diabo? Para a direita!

“Não sabes dirigir! Agüenta a direita!”, ralha o militar.

Um cocheiro de carruagem particular pragueja ao cruzar, e um transeunte, que atravessara a rua correndo e batera com o ombro no focinho da égua, olha furioso e sa­code a neve da manga. Iona se contorce na boléia como se estivesse sentado em alfinetes, joga os cotovelos para os lados, e seus olhos correm como possessos, como se não compreendesse quem é e por que está ali.
— Como todos são canalhas! — zomba o militar. — Só procuram abalroar-te ou se jogar debaixo do teu cavalo! É que estão todos de conluio contra ti!

Iona olha para trás, para o passageiro, e move os lá­bios... Vê-se que quer dizer alguma coisa, mas da sua garganta não sai nada, a não ser um som gutural.
— O que é? pergunta o militar.

Iona torce a boca num sorriso, força a garganta e rouqueja:
— É que... patrão... coisa... o meu filho... se finou esta semana.
— Hum!... E de que foi que ele morreu?

Iona volta-se de corpo inteiro para o passageiro e diz:
— E quem sabe lá! Vai ver, foi a febre... Ficou três dias no hospital e se finou... É a vontade de Deus.
— Vira, demônio! — soa na escuridão. — Estás tonto ou o quê, cachorro velho? Toca para a frente!

O cocheiro torna a esticar o pescoço, a soerguer-se, brandindo o chicote com graça pesada. Depois, por várias vezes, ele se volta para o passageiro, mas este fechou os olhos, e pelo visto, não está disposto a escutar. Deixando-o na Viborgskaia, Iona pára diante de um botequim, dobra-se na boléia e torna a ficar imóvel... De novo a neve úmida tinge de branco a ele e sua égua. Passa uma hora, outra...

Pelo passeio, pisando, pisando ruidosamente com as ga­lochas e altercando, passam três rapazes: dois deles são altos e magros, o terceiro é baixo e corcunda.
— Cocheiro, para a Ponte Policial! — grita o corcunda com voz de trêmulo. — Nós três — por vinte copeques!

Iona puxa as rédeas e estala os lábios. Vinte copeques não é o preço justo, mas ele não está para pensar em pre­ço... um rublo ou cinco copeques, para ele dá na mesma agora – haja passageiros... Os moços, aos empurrões e palavrões, vêm para o trenó e sobem no assento todos ao mesmo tempo. Começa a discussão do problema: quais os dois que irão sentados, e qual o terceiro que irá de pé? Após longos debates, bate-boca e acusações, eles chegam à de­cisão de que deve viajar de pé o corcunda, por ser o menor.
— Anda, toca! — range o corcunda, firmando-se e ba­fejando na nuca de Iona. — Descansa o cavalo! Mas que gorro o teu, hein, mano! Pior não se acha em toda Peters­burgo!...
— Eh, eh... eh, eh... — gargalha Iona. — É o que é...
— Anda, tu aí, “é o que é”, toca pra frente! É assim que vais andar o caminho inteiro? E que tal um pescoção?
— A cabeça me estala... — diz um dos compridos. Ontem, na casa dos Dukmássov, nós dois, o Vaska e eu, limpamos quatro garrafas de conhaque.
— Não entendo por que mentir! — enfeza o outro comprido.
— Mentes que nem um animal!
— Que Deus me castigue se não é verdade.
— É tão verdade quanto um piolho tossir.
— Eh... eh... — ri Iona. — Que senhores alegres...
— Arre, que os diabos te carreguem!... — indigna-se o corcunda. — Vais andar, carcaça velha, ou não? Isso é maneira de dirigir? Chicote nela! Upa, diabo! Upa! Dá-lhe rijo!

Iona sente atrás das costas o corpo irrequieto e a vi­bração da voz do corcunda. Ouve os insultos que lhe são dirigidos, vê a gente, e o aperto da solidão pouco a pouco começa a afrouxar no seu peito. O corcunda continua a imprecar, até que engasga num palavrão de seis andares e desanda a tossir. Os dois compridos põem-se a conversar sobre uma certa Nadejda Petrovna. Iona olha para eles por cima do ombro. Escolhendo um momento propício, volta-se novamente e balbucia:
— E eu nesta semana... coisa... finou-se meu filho!
— Todos vamos nos finar... — suspira o corcunda, enxugando os lábios depois do acesso de tosse. — Anda, toca, toca! Deus meu, palavra que não agüento mais viajar assim! Quando é que nós vamos chegar?
— Você poderia animá-lo um tiquinho — na nuca!
— Estás ouvindo, traste velho? Vou te encher de pes­coções! Se a gente começa a fazer cerimônia com a tua laia, acaba andando a pé! Estás ouvindo, Dragão Gorinitch? Ou não te importa o que dizemos?

E Iona ouve, mais do que sente, o ruído do pescoção.
— Eh, eh... — ri ele. — Que senhores alegres. Benza-os Deus!
— Cocheiro, és casado? — pergunta um dos com­pridos.
— Eu, é? Eh, eh... A-alegres senhores! Eu agora só tenho uma mulher: a terra úmida... Eh, eh... oh, oh... A sepultura, é o que é!... O filho, esse morreu... e eu estou vivo...Coisa esquisita, a morte errou de porta... Em vez de vir me buscar, foi ao filho...

E Iona volta-se para contar como morreu seu filho, mas aí o corcunda suspira aliviado e declara que, graças a Deus, eles já chegaram, finalmente. Tendo recebido os vinte copeques, Iona fica longamente a olhar no encalço dos far­ristas, que desaparecem num portão escuro. Outra vez ele está só, e outra vez o silêncio cai sobre ele... A angústia, que amainara um pouco, surge de novo e oprime-lhe o peito com força maior ainda. Os olhos de Iona correm aflitos e martirizados pelas turbas que se agitam de ambos os lados da rua: não haveria no meio desses milhares de pessoas ao menos uma que quisesse ouvi-lo? Mas as turbas correm sem notá-lo, nem a ele, nem à sua angústia... Angústia enorme, que não conhece limites. Se estourasse o peito de Iona e a angústia se derramasse, ela inundaria, parece, o mundo inteiro — e, no entanto, ela é invisível. Ele conseguiu aninhar-se numa casca tão ínfima, que não se pode enxergá-la nem com lanterna à luz do sol...

Iona vê um zelador de prédio com um saco na mão e decide falar com ele.
— Mano, que horas serão? — pergunta ele.
— Passa das nove... E por que ficas parado aqui? Vai andando!

Iona afasta-se alguns passos, dobra o corpo e entrega-se à angústia... Dirigir-se aos homens ele já considera inútil. Mas não passam nem cinco minutos e ele se endireita, sacode a cabeça como se sentisse uma dor aguda e puxa as rédeas.. Ele não agüenta mais.

“Para casa”, pensa ele. “Para casa!”

E a eguazinha, como que adivinhando-lhe o pensamen­to, põe-se a correr a trote miúdo. Cerca de hora e meia de­pois, Iona já está sentado junto a uma estufa grande e suja. Em cima da estufa, nos bancos, no chão, homens estão ron­cando. O ar está denso e abafado... Iona olha para os dorminhocos, coça-se, e lamenta ter voltado para casa tão cedo.

“Não ganhei nem para a aveia”, pensa ele. “É por isso que estou aflito. Um homem que entende do seu trabalho... que está de barriga cheia, assim como o seu cavalo, esse está sempre sossegado...”

Num dos cantos, acorda um cocheiro moço, pigarreia e estende a mão para o balde de água.
— Deu vontade de beber? — pergunta Iona.
— De beber, pelo visto!
— Pois é... Bom proveito.. Pois eu, mano... morreu meu filho... Soube? Esta semana, no hospital... Que história!

Iona olha para ver o efeito que produziram suas pala­vras, mas não vê nada. O moço puxou a coberta por cima da cabeça e já dorme. O velho suspira e se coça. Assim como o moço tinha vontade de beber, ele tem vontade de falar. Logo vai fazer uma semana que o filho morreu, e ele ainda não conversou direito com ninguém... É preciso conversar com vagar, com calma... É preciso contar como o filho ficou doente, como sofreu, o que disse antes de morrer, como morreu. É preciso descrever o enterro e a viagem ao hospi­tal para buscar a roupa do defunto. Na aldeia ficou uma filha, Aníssia... Também dela é preciso falar... Há tanta coisa de que ele poderia falar agora... O ouvinte deve ge­mer, suspirar, compadecer-se... Melhor ainda seria falar com mulheres. Elas podem ser burras, mas põem-se a cho­rar à segunda palavra.

“Vou ver o cavalo”, pensa Iona. “Sempre terei tempo para dormir... Dormirei até que chegue...”

Iona se veste e vai para a cavalariça, onde está a sua égua. Ele pensa na aveia, na palha, no tempo... No filho, quando está sozinho, ele não consegue pensar. Falar com alguém a respeito do filho, isso ele poderia, mas pensar so­zinho e imaginá-lo é-lhe insuportável e assustador...
— Mastigas? — pergunta Iona ao seu cavalo, vendo-lhe os olhos brilhantes. – Mastiga, anda, mastiga... Se não ganhamos para a aveia, comeremos palha... Pois é... Já estou velho para este trabalho... O filho é que devia trabalhar, e não eu... Aquele sim é que era cocheiro de verdade... Se ao menos vivesse...

Iona cala-se um pouco, depois continua:
— Assim é, mana egüinha... Não temos mais Kuzmá Ionitch... Foi-se desta para melhor... Pegou e morreu, à toa... Agora, imagina tu, por exemplo: tu tens um po­trinho, e tu és a mãe desse potrinho... E de repente, ima­gina, esse mesmo potrinho se despacha desta para melhor... Dá pena ou não dá?

A eguazinha mastiga, escuta e esquenta com seu bafo as mãos do dono...

Iona se deixa arrebatar e conta-lhe tudo.

(Conto enviado por Mara Narciso).




3 comentários:

  1. Belo, extraordinário conto de Tchecov.
    Pedro, esta edição de hoje está uma obra-prima.
    A vontade que dá na gente é de comentar todos os posts.

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  2. Belíssimo conto...
    Triste ver angústia de alguém que apenas
    quer ser ouvido.
    Lona, assim como tantas outras pessoas que
    batalham pelo seu ganha pão, são invisíveis.
    Pessoas ricas de histórias que com certeza
    se perderão...assim como a de seu menino.
    Abraços

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  3. Ai, que tristeza desmesurada. Quem aguenta ler isso?

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