quinta-feira, 31 de dezembro de 2009




Um sonho

* Por Fernando Yanmar Narciso


Aquele dia em nada lembrou o cotidiano. Os carros não saíram da garagem, os ônibus e caminhões não trafegaram pelas avenidas. Ninguém trabalhou, nenhuma engrenagem que move o país se movimentou. Não. Tudo o que ouvíamos eram passos. Uma marcha, a maior talvez da história da humanidade. Em cada cidade, cada estado, cada fazenda, todas as pessoas saíram de suas casas, de seus afazeres e se puseram a caminhar.

O som dos passos era tão alto que ecoava nas montanhas e fazia o chão tremer. Todos nós. Homens e mulheres. Crianças, adolescentes, adultos e idosos. Pedreiros e economistas, mendigos e empresários, religiosos e ateus, pudicos e tarados, acanhados e exibicionistas, policiais e traficantes, corintianos e palmeirenses, flamenguistas e vascaínos, Galo e Raposa. Yin e Yang.

Nesse dia, todas as barreiras que amamos depositar diante de nós caíram por terra. Todos os corações brasileiros tornaram-se um só. Continuávamos marchando e marchando, como se todos tivéssemos ensaiado a vida inteira para esse momento. Marchando e marchando. Nenhum obstáculo ousava se opor a nós. Bolhas nos pés não eram nada. A distância não importava. Fome, sede, frio, calor e mortes no caminho logo eram superados. Cada brasileiro sabia que estava fazendo parte de uma coisa muito especial. Todos andávamos como zumbis, enxergando nosso objetivo cada vez mais adiante.

Céu sem nuvens, esculturas estranhas por toda parte, edifícios futuristas de gosto duvidoso, o ar seco perfurando nossas gargantas. Enfim, todas as pessoas do país haviam atingido seu objetivo: O centro do país. O lugar onde o drinque era misturado. Onde gente da pior espécie brinca com nossos destinos como fichas numa mesa de pôquer. O primeiro berro foi ouvido do fundo da majestosa fila.
- QUEREMOS O QUE É NOSSO!

A comoção foi geral. Ouviu-se a maior vaia já registrada em decibéis na história do mundo. Puderam nos ouvir de pólo a pólo no mundo. Logo, gritos e cantigas ufanistas foram ganhando coro na massa de pessoas. Ergueram os primeiros cartazes reprovadores. FORA! NÃO QUEREMOS MAIS SABER DE VOCÊS! SEU TEMPO JÁ PASSOU!- era o que diziam.

Forcas improvisadas circulavam sobre nossas cabeças como astros de rock pulando na galera. Veio uma lágrima no rosto de cada um de nós quando ergueram a primeira tocha e o primeiro pedaço de pau. Os homens da lei nada podiam fazer contra 140 milhões de pessoas. Todos estavam ao redor do palácio, tremendo de medo de nós, tentando dar cobertura para o mandatário maior da nação. Todos os políticos que arriscavam uma negociação recebiam o que mereciam.

Os seguranças ao redor do palácio nada mais podiam fazer para conter a multidão. A manifestação havia, enfim, se transformado em uma guerra. Todos aplaudimos quando o primeiro de nós conseguiu romper a barreira humana e invadir o palácio.
-Venha, nosso rei! Venha receber um abraço caloroso de seu povo!

Todos arremessaram tijolos e pedras contra as vidraças. Um arremessou a forca sobre o lago para servir de ponte. Não existia mais nada entre o povo e seu país. O homem não podia mais escapar de seu destino. Interditamos todas as escadas e elevadores. Ele se tranca em seu gabinete. Mas o que é uma porta entre milhões e um só homem? Assim que conseguimos arrombar a porta, ele abriu a janela e ameaçou se jogar do vigésimo andar.

Aí eu acordei.

* Fernando Yanmar Narciso, 25 anos, formado em Design, filho de Mara Narciso, escritor do blog “O Blog do Yanmar”, http://fernandoyanmar.wordpress.com

4 comentários:

  1. Maravilhoso...uma utopia?
    Sim...mas quem sabe se a gente sonhar
    com muita força...quem sabe?
    Feliz Ano Novo
    Abraços

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  2. Nossa, que pesadelo! Fazer do presidente refém? O homem foi escolhido pela maioria, em dois turnos. Cercá-lo é retroceder.

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  3. Darias um ótimo companheiro de partido ... nos anos 60/70. Nasceste atrasado ou estás prestes a reinstaurar uma oposição, de fato? Ainda não sei do que se trata, mas, a julgar pelo contagiante delírio, sou já simpatizante. Parabéns, companheiro!

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  4. Muito bem rapaz, dê ao povo o que é do povo. Como disse o nosso amigo Daniel acima: nasceste em um tempo errado, seria um excelente comunista. Parabéns pelo texto utópico. Mas quem sabe um dia, hem?

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