segunda-feira, 21 de dezembro de 2009




Quantas vidas pode haver numa existência?

* Por Mara Narciso

Meus pais eram separados. Até tentaram uma reconciliação, mas não deu. A minha mãe estava debulhando o milho quando deduziu o erro do farmacêutico: a sua língua estava queimada. Uma colher de leite de magnésia em pó, trocada por arsênico, me fez órfã aos onze anos. Então me levaram para morar com meus avós.

Fui tirada da escola e obrigada a trabalhar no roçado dia e noite como escrava. Era espancada sistematicamente, por qualquer coisa, ou por nada. Os meus avós, ele e ela, eram cruéis.

Aos treze anos o meu avô me casou. Não disse o “sim”. Achava que estando muda, o casamento não aconteceria. Mas o meu avô respondeu por mim. Sem nunca ter tido infância estava casada com um homem de 33 anos, tão mau quanto o meu avô.
Usou da força desde o nosso primeiro encontro carnal. Tive ódio desse homem, que me usava com modos de um animal. Para me ter era preciso correr e me segurar, senão nada feito. Eu o desafiava e nunca cedia. Mas ele era forte. Mesmo arisca, nem sempre eu conseguia escapulir. Ainda crescia em altura, quando vi a minha primeira barriga crescer. Aos catorze anos fui mãe pela primeira vez; mas de um menino morto. Foi melhor assim. Seríamos duas crianças, e eu sem condição de cuidar de ninguém.

Cortei cana, rasgando as mãos e os braços para ganhar dinheiro e buscar a libertação. Mesmo no começo, eu dizia ao marido que aquilo não duraria muito tempo. Era ainda menina e não conseguia subir no trator para ir para a roça de cana. Esticava toda a perna, mas não alcançava a parte de cima da roda. Então as minhas companheiras faziam o “pezinho” com as mãos, eu pisava nelas e conseguia subir para ir trabalhar. Era preciso cortar uma cota mínima, mas não dava conta, então minhas colegas me ajudavam.

Quando o meu primeiro filho vingou, eu já contava 18 anos. Nessa época tinha porte para ser mãe. Então consegui ser. Mas eu não aceitava esse destino de dor sem brigas não. Era topetuda e meu atrevimento me levava a agir de forma perigosa, pois peitava meu marido e repetia que um dia sustentaria a mim e ao meu filho, e iria embora.

O tempo foi passando e os meus tesouros foram chegando ano a ano até juntar meia dúzia. A primeira coisa que um menino faz ao nascer é desocupar o lugar para o outro. E assim foi. Já havia recurso para não encher a casa de filho, mas não para uma mulher semi-analfabeta e refém de um marido ignorante.

Com os meninos grandinhos, voltei para a escola. O meu mais velho estava na sétima série e eu na quinta. Após alguns anos de estudo tornei-me professora leiga, e o pouco que sabia ensinava às crianças, inclusive às minhas.. Avançando, fui morar na cidade e fiz o normal. Lecionava, e com o dinheirinho pude cumprir o prometido. Pedi a separação, no que os meus filhos me apoiaram. Um deles estava trabalhando, e nós dois pudemos bancar as despesas da casa.

Nunca abandonei a vontade de lutar para ser alguém. Queria ser independente, ter mais conforto, dar estudo aos meus filhos, e ser feliz. Amava a todos eles. Sempre tive amigos e colegas que me motivaram a avançar.

Consegui fazer a faculdade de Pedagogia, então trabalhei como professora concursada, e depois orientadora. Hoje trabalho como diretora de uma escola e não me queixo, nem do trabalho e nem do que ganho. Sinto-me muito bem com o que faço.

Nunca esperei pouco do destino, mas não contava que viesse a me apaixonar aos 46 anos. Num certo dia, há dez anos, conheci alguém, dez anos mais moço. Cautelosa, pedi opinião aos meus filhos e recebi deles apoio e incentivo. Então me casei novamente. Só que desta vez não fiquei muda não. Quando o juiz me perguntou, eu respondi o “sim” rapidamente.

* Médica, acadêmica do sétimo período de Jornalismo e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”

6 comentários:

  1. Esse texto para mim é como um
    belo conto de Natal. Uma história
    de sofrimentos, superação e um belo
    de um final feliz.
    Amei Mara.
    beijos

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  2. Quanta vitória num anonimato tão doloroso! Isso exatamente, e não as imposições de um povo sobre o outro, que tornam o ser humano realmente grande.

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  3. Independente do número de existências,
    o importante é lutar.
    Colocar a " carroça" para andar.
    Seguir em frente.
    Assim fez a personagem.
    Lutou pela felicidade e ainda ganhou
    um prêmio : Amou e foi amada.
    Belo conto, Mara.
    Beijos

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  4. São casos assim que nos mostram que a brutalidade não mata a vontade de vencer. É caso verdadeiro, e a mulher hoje tem 56 anos.

    Núbia, Daniel e Celamar, obrigada pelos comentários.

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  5. Um conto edificante, sem ser doutrinador. Exemplo e inspiração pra olharmos pra trás (e pra frente!), nesta época de sonhos e reflexões. Obrigado pelo presente, Mara. Feliz Natal.

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  6. Obrigada Marcelo pelo elogio e ensinamento. Algumas vezes a história não quer doutrinar, mas no fecho é comum errarmos a mão.

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