segunda-feira, 21 de dezembro de 2009




Madame Margô provou da heresia. E era doce

* Por Eduardo Murta

Contados no dedo, não seriam mais que 711 os moradores do conjunto de casinhas alinhadas ao poeirão daquela Vila do Cachorro Magro. Vivendo, certamente, noutro vórtice do tempo. A começar pelo singelo detalhe de que todos se conheciam – por sobrenome, apelido, sinal de nascença. Eram quase uma família. Quase. Porque dois ou três personagens haviam sido capazes de abalar a catedral de certezas que cultivavam por gerações a fio.

Já era muito para um lugar que de outras localidades só não havia requisitado nome emprestado. O padre – uma missa quinzenal – vinha de Cruz Alta. Lombo de burro, adentrava a pracinha triunfal, como encenasse o Domingo de Ramos, borrifando água benta até nos telhadinhos baixos. O barbeiro chegava sempre aos sábados, com colônias renovadas num doce de virar estômagos. E o dentista, que passava por lá mais para arrancar que para tratar, aparecia a cada semestre.

Foi Mariana Mocó quem primeiro pôs desconcerto avassalador a toda essa rotina, em que abanar mosquitos era diversão por manhã, tardes e noitinhas nas frescas da varanda. Começou com as roupas em tons mais fortes. Encomendou música de vitrola para o Armazém de Seu Nico. Depois, vieram as danças de rosto colado. E um avanço criteriosamente calculado na generosidade do decote. Fez, claro, transbordar o baú de desejos da tropa.

E logo se rebatizou: Madame Margô. Desfilava soberana por ali. Peitos de índia. Bunda africana. Em pouco tempo se tornaria sonho de viajantes. Desejada, fazia tipo. Teatro de gênero. Porque jamais houvera tragado daquela piteira longa. E a ela também não pertencia aquela pinta ao canto superior da boca, à esquerda. Nem eram da velha Paris, como contava, as roupas íntimas com que se exibia.

Mas não esperassem, por conta dessas concessões à fantasia, que fosse largar tudo em deliberada frouxidão. Ao contrário. No cabaré, impôs severo manual de conduta. Beberrões, brigões e maridos de mulheres tristes estavam fora da agenda. Ah, banguelas igualmente. A ela davam asco aqueles beijos lisos, sem tensão felina. Mastigadores de fumo, pela natureza do hálito, eram outra gente fora de seu baralho do amor ligeiro.

Ao comando, jamais se deixava surpreender. Em verdade, se antecipava a tudo. Recebia em tapete vermelho a caravana de circo fazendo fila à porta do quarto. E reserva olhos de mansidão aos desenganados pela medicina que queriam se despedir em madrugadas de prazer pagão. Mas aquele desafio que agora lhe aportara aos ouvidos embaraçava a alma: os meninos do vilarejo em aposta, a ver quem seria o primeiro para uma aventura com Madame Margô. Haviam juntado moeda a moeda, sem alcançar o que equivaleria a uma mísera sessão de sofá. A data para a prova estava marcada.

Então, às seis da matina daquele sábado, dezembro, eram os cinco ali na Fazenda do Brejão. Castelo, Limão, Tererê, Juá e Lulu. Todos na travessia dos 11 anos, tiraram na sorte quem seria o primeiro a montar o cavalo Tempestade. Chucro. Indócil. Estava ali o passaporte para eleger quem se deitaria à cama da prostituta. Um arraso, porque todos deram com a cara ao chão.

Já partiam, quando o vulto em vermelho cruzou a luz quase amanhecida do galpão. À vermelhidão, se retraíram, ao temor de que desejo desenfreado e pecado se vulcanizavam, formando a silhueta do demônio. Até se aperceberem do odor tomando os ares. Um movimento mais, e dariam com a imagem. As pernas infantis num tremor hesitante. Os cheiros se avolumando. Estavam frente a frente com o que os desafiava. A própria Madame Margô.

Ela fez sinal de silêncio, sugerindo pacto de cumplicidade. Mal acreditavam. E, caminhando a eles, fechou os olhos aos deslizes da heresia. Começou se despindo pelo gorro. Depois, o casaco emprestado de Papai Noel. Se desembrulhou por inteiro. E, profano que fosse, reservaria àqueles meninos um Natal de que se recordariam vida afora. Feito inesperado e provocante presente.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras

Um comentário:

  1. Muita generosidade de Madame...vai povoar
    os sonhos nessas cabecinhas durante muito tempo.
    Talvez a vida toda.
    Adorei!
    Abraços

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