domingo, 20 de dezembro de 2009




Duas histórias de fronteiras

* Por Paulinho Assunção


1 — A doce história de Gamaliel Giordano

Ah, sim, Seu Comandante, meu nome é Gamaliel Giordano e estou sempre fora de lugar.

O senhor diz: direita. Eu vou para a esquerda. O senhor diz: esquerda. Eu vou para a direita. O senhor diz: continência. Eu viro de costas, vou-me embora.

Desde pequeno eu sou assim, Seu Comandante. Cresci sem moldes. Não está em mim. É uma cócega que dá, um formigamento, uma gastura. A ordem vem, eu desconverso.

Fui guarda de banco dois dias, porteiro de boate só uma noite, chofer de particular menos de uma semana. O que mais durou e dura em mim é o acontecimento das viagens. A marinha mercante, os expressos ferroviários. E sei falar amor em dez línguas. E quando falo, todas as mulheres acendem lâmpadas.

Viajeiro, viajante, viajor de multiplicados lugares. Isto eu sou, Seu Comandante. Conheço mais de vinte portos, conjugo bem os verbos, sei muitos sinônimos. As mulheres que eu tive elogiaram o meu tino. De muitas, até hoje recebo cartas. De muitas, tenho ainda no ouvido o som das palavras suaves.

Mas não dou conta de cumprir ordens, Seu Comandante. Hoje é sexta, amanhã é sábado, depois será domingo. O pé de hoje não será o pé de daqui a pouco. Viver é sempre pôr um pé depois do outro, Seu Comandante. Andar, eu aprendi andando; ler, eu aprendi lendo.

Duvida que eu seja versado nas linhas complicadas, Seu Comandante? Mas não duvide. Li Göethe. Sei Camões e Petrarca.

E sei mais. Distingo pelos olhos o homem que mata e o homem que pondera. Nada sei de inferno, nada sei de céu. Jamais pedi bênçãos. A ninguém. Sou migrante. Hoje aqui, amanhã ali. A felicidade de um homem é cruzar uma fronteira. Todo longe para mim é perto.

Pode então me prender, Seu Comandante. Com algemas. Vou para a solitária, mas não cumpro ordens.

2 — Os namorados e os objetos perfurantes

Os namorados queriam furar o instante com uma agulha. O instante crescera desde a última lua nova. Originara-se de um cisco, de uma migalha, de um farelinho de nada. Agora era um instante oblongo, bojudo, farto, certamente pleno de todos os conteúdos próprios dos instantes.

A luz do poste, tão fraca. Sirenes longínquas. Rumor e algaravia numa casa e outra, antes que a noite avançasse. E os namorados, ali, no quase-escuro, junto ao poste, prontos para furar o instante com uma agulha.

Ela queria de um jeito; ele queria de outro. Dúvidas sobre o uso de objetos perfurantes. Mas ambos queriam furar o instante, de modo a que o instante, com todos os recheios próprios dos instantes, vazasse, transbordasse, inundasse os arredores, muito embora nenhum deles soubesse o que havia ou poderia haver nos arredores de um instante.

Ia dar a meia-noite, um cachorro disse sim para as interrogações de outro cachorro e, logo, uma multidão de cachorros dizia sim em uníssono. Vultos que não eram vultos passaram sobre um muro, sumiram por entre as árvores. Chispas havia nos olhos dele, chispas havia nos olhos dela.

Há uma hora em que os corações disparam sem o governo do destino. Lá longe tocava uma guarânia paraguaia, lá longe alguém gargalhou o inexplicável.

A agulha estava pronta, em riste, em busca do novelo. O instante então ficou iluminado pela lua. Foi só um gesto. Foi só um furo. E veio a enchente.

* Poeta, ficcionista e jornalista com mais de uma dezena de livros publicados. Foi membro da Comissão de Redação do Suplemento Literário do Minas Gerais e repórter na sucursal mineira da Agência Estado. Ganhou o Prêmio Cidade de Belo Horizonte de 1983 (Poesia) e o Prêmio Minas de Cultura (Guimarães Rosa), categoria contos, em 1998.


Nenhum comentário:

Postar um comentário