segunda-feira, 28 de dezembro de 2009




Direito à informação

* Por Mara Narciso

Poucas casas tinham televisor em 1964, mas em minha sala reinava um deles onde víamos o que nos mostrava a TV Tupi no período noturno em que a torre repetidora do Pentáurea nos enviava imagens em preto e branco e muitos ruídos e chuviscos. A programação era de noticiários, musicais, novelas, filmes, programas de auditório e comerciais toscos. Pela telinha vimos o homem chegar à lua, a Copa do Mundo de Futebol de 1970, o progresso brasileiro exibidos pela Transamazônica, a Ponte Rio-Niterói, e a Usina de Itaipu. Tudo mostrava o progresso ufanista do “Brasil Grande!”.

Na minha casa as pessoas liam as revistas Fatos & Fotos, Cruzeiro e Manchete todas as semanas. Também vi de longe os exemplares da revista Realidade, em sua curta existência, pois a minha mãe, zelosa pelas suas crianças, dizia que a leitura dessa revista era proibida.

No carro do meu pai havia um adesivo plástico com a bandeira do Brasil num dos cantos, ladeando a frase que muito o orgulhava: “Brasil, ame-o, ou deixe-o”. Durante as refeições em família, ele nos dizia que o Brasil estava evoluindo devido ao trabalho dos militares que baniram do Brasil os terroristas. Também falava em tom de zombaria que a Veja, recém-lançada, era ruim, e o tamanho pequeno era indicador da ruindade da revista. Mesmo amordaçada, a revista naquela ocasião defendia a democracia.

Quando foi permitido votar, já que o prefeito era indicado pelo governador, o meu pai escolhia candidatos da ARENA, Aliança da Renovação Nacional, o partido do governo. A minha mãe alinhava-se com o irmão dela, Pedro Narciso, um dos fundadores na nossa cidade do então MDB, Movimento Democrático Brasileiro, o partido de oposição. Os filhos iam junto com a mãe.

No Colégio Imaculada Conceição, e depois, no Colégio São José, havia uma bandeira do Brasil dentro de uma moldura na parede da frente de todas as salas de aula, ao lado do quadro-negro. Antes das atividades escolares, obrigatoriamente cantávamos o Hino Nacional. Muitas vezes todos os alunos iam para o pátio e ficavam perfilados ao sol ouvindo discursos de autoridades que nem sabíamos quem eram.

Eu era ligada em rádio, televisão e revistas. Apaixonada por Roberto Carlos, tão fanática que tinha todos os seus discos, colecionava posters e as letras das músicas e tudo que lhe dissesse respeito, e não perdia o programa Jovem-Guarda nas tardes de domingo. Quando “O Rei” veio em Montes Claros, fomos ao Estádio do Ateneu ver ao show.

Na Faculdade de Medicina, em 1974, tivemos a disciplina Organização Social e Política do Brasil. Nela, o nosso professor, um coronel da Polícia Militar, nos falava as coisas boas que os presidentes marechais faziam pelo Brasil e pelo povo brasileiro. Após as preleções, certo dia nos mandou fazer um trabalho sobre os quatro presidentes militares, até então, onde eu contei, após pesquisa nas enciclopédias Barsa e Conhecer, que os governos deles foram tudo de melhor para o Brasil.

Em 1977, quando me casei, passei a ler a Veja, mas não compreendia as questões políticas. O meu então marido, filho de um sargento da FAB - Força Aérea Brasileira, contava-me que, em 1969, quando serviu ao Exército, recebeu como serviço vigiar duas mulheres e um homem que estavam presos. O crime deles era subversão, ou seja, eram comunistas. Os militares os deixavam nus para intimidá-los, jogavam água forte sobre eles para torturá-los, e outras maldades, como deixá-los com fome e sede, pois mandavam os recrutas salgarem as suas comidas. Eu repudiava, mas não entendia. Dizem que muitos de nós éramos alienados. Eu era. E não há desculpa.

O que dominava os cinemas eram filmes com imensos cortes feitos pelos censores. As produções nacionais eram em sua maioria pornochanchadas, umas pseudocomédias absurdas. Havia a revista masculina chamada Homem e depois mudada para Playboy, onde apareciam fotos adulteradas de mulheres nuas com borrões em cima das partes pudendas. A censura inominável impedia qualquer tipo de expressão artística, exercendo uma tutela vexatória. Uns poucos censores impediam uma nação inteira de ver coisas que eles julgassem imorais, inadequadas ou inoportunas. Até desenhos animados de Tom e Jerry eram cortados ou vetados por incitarem a violência, segundo vim saber depois. E assim, toda uma população era feita incapaz, pois todos eram guiados.

Sabia que meu tio Petronilho Narciso, que morava em Belo Horizonte, tinha amigos que tinham desaparecido, raptados pelos militares. Não me era possível saber o que acontecia, o que se descortinou quando fui fazer residência médica em Belo Horizonte, em janeiro de 1980. Morei justamente na casa desse meu tio, economista e leitor de “O Capital” e passei a ler o jornal Folha de São Paulo. Fiquei chocada ao descobrir que o Brasil vivia há vários anos sob censura ferrenha dos meios de comunicação, onde a delação era papel moeda, e uma ditadura reprimia todas as manifestações populares, tidas como ilegais e criminosas. Eu já tinha lido a palavra ditadura em pichações nos muros da minha cidade em letras pretas e escritas às presas pelas madrugadas: “Abaixo a Ditadura”), coisa que na época eu não compreendia.

Então eu soube dos desaparecimentos, torturas e mortes. Antes, quem não estava do lado do governo, era inimigo, mas as pessoas comuns não sabiam de nada. Entre a surpresa e a revolta de ter sido enganada por tanto tempo, busquei na memória os pedaços de fatos e de conversas. A minha mãe percebia o que se passava, era contra, mostrava rebeldia em relação ao governo. Como meu pai era ardoroso fã da chamada Revolução de 31 de Março, eu acabava ficando perdida. Havia um mistério no ar.

Na capital tive contato com os fundadores do Partido dos Trabalhadores, e participei durante 37 dias de uma greve de médicos residentes e de uma passeata no centro de Belo Horizonte, vigiados por policiais e cães enormes e não menores cassetetes, em prol de fundação da CUT, Central Única dos Trabalhadores, em setembro de 1981.

Nada entendo da teoria socialista, mas me tornei uma militante de esquerda, emocionada com os efeitos das arbitrariedades do governo militar e a coragem dos que ousaram desafiá-lo. Os generais foram hábeis castradores de toda uma geração que não podia abrir a boca, nem se manifestar e nem mesmo entender os fatos. Todas as versões contavam histórias da carochinha e o povo brasileiro as engolia sorrindo, devido à propaganda oficial.

A ocultação da verdade nos fez sentir ignorantes. Senti-me mal com as revelações, e passei a consumir toda sorte de leituras, e me abastecer nas canções dos meus ídolos Gonzaguinha e Chico Buarque. Também ri das músicas que cantávamos no passado vergonhoso, sejam as de Dom e Ravel – “As praias do Brasil ensolaradas, lá, lá, lá” – ou mesmo as músicas melosas de Roberto Carlos, um dissimulado, segundo fiquei sabendo, embora haja controvérsias. Essas lembranças deixaram-me envergonhada.

Beatriz Kushnir, mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense e doutora em História Social do Trabalho pela Unicamp, nos relata os dois lados da moeda da profissão Jornalista durante os anos de chumbo da ditadura no seu livro “Cães de Guarda” e nos explica a intenção do seu relato:” o objetivo é iluminar um território sombrio e desconfortável: a existência de jornalistas que foram censores federais e que também foram policiais enquanto exerciam a função de jornalistas nas redações” (p. 26). Na página seguinte faz o contraponto: “.não quero dar a entender que a autocensura e o colaboracionismo tenham sido praticados pela maioria dos jornalistas, pois isso está longe da verdade. Muitos dos que combateram nas práticas do Estado pós-1964 e pós-AI5 ficaram desempregados, foram encarcerados e perseguidos. Muitos jornalistas igualmente desempenhavam uma militância de esquerda – de simpatizantes engajados- e padeceram (muitas vezes com marcas na própria pele) por tais atitudes”(p.27).

Toda verdade tem lados, fatos e versões. É um insulto vermos burlado o nosso direito à informação, e a culpa de tudo isso se dissolveu numa abertura ampla geral e irrestrita. A nação escolheu esquecer tudo.

(Referência: “Cães de Guarda”, Beatriz Kushnir, Boitempo Editorial, 2004, São Paulo SP)..

* Médica, acadêmica do sétimo período de Jornalismo, e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”

5 comentários:

  1. Mara, quando comecei a ler tudo o que caia em minhas mãos, fui me certificando do quanto somos enganados. Meu avô não era ativista político, entrou nessa por necessidade pois sua única função
    era colar os panfletos pela cidade. Foi preso em flagrante e apanhou um bocado e só foi liberado após constatarem que ele era mesmo
    analfabeto.
    Analfabeto sim, mas não era um ignorante e ciente do que se passava, procurou alertar
    aqueles que se dispuseram a ouvi-lo.
    Pena que a maioria dos "ouvidos" eram convenientes.
    Ótimo texto!
    beijos

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  2. Militei na organização de uma oposição ao pelego do sindicato dos jornalistas daqui do Rio de Janeiro em meados dos anos 70. Desde cedo sabia das coisas e acreditava estar colaborando para uma nova consciência nacional. Bobagem. Hoje, vejo universitários enxovalhando uma jovem por causa da sua minissaia, algo impossível à minha época! Restou a certeza de que, se cultura e informação nos enriquecem, é o bom-senso que nos distingue, de fato. E tal, acredito, a gente aprende em casa.

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  3. Daniel e Núbia, o comentário de vocês enriquecem o momento e o texto. Consegui sobreviver ao caldeirão que me formaria uma pessoa alheia aos acontecimentos. Foi bom ter conseguido evitar isso. Obrigada gente!

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  4. Sua crônica me fez reviver tanta coisa...Acontecimentos tristes, perda de amigos, de professores, prisão torturas...Um tempo que é impossível esquecer
    Beijos

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  5. Consciência tardia é melhor do que nunca, já dizia Tiradentes. Cresci entre pensamentos opostos, e acabei escolhendo um dos lados. Quando me decidi, senti-me uma desbravadora, mas o perigo já tinha passado. Obrigada Risomar. Sei que essas lembranças não são boas.

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