segunda-feira, 28 de dezembro de 2009




De sua xícara de poesia eu me sirvo

* Por Eduardo Murta

Me lembro como se fosse ontem. Tão viva a imagem do menino – acho que posso chamá-lo de menino – adentrando o bar. A feição que namorava laços de tristeza numa ponta, e noutra, uma candura imitando poetas. Já o avistara por várias vezes e, o juízo não estivesse me traindo, fazia um tipo de gente marcada para morrer. Morrer e ser lembrada. Tinha movimentos meticulosos e dialogava em voz baixa com o casal que soava a tio e tia. Igualmente ritualesco na forma quase sacra ao emborcar a xícara de café com leite servida a ele todas as manhãs. Bebia e, invariavelmente, tossia. O lenço vinha fazendo guarda cerimoniosa à cena.

O mais instigante era vê-lo em seguida encaixar o cigarro ao canto da boca. Tragando como beijasse uma mulher. Num jogo de lábios em que a cumplicidade nem piscava. O bolinho de carne e a cerveja vinham na seqüência, e eu, do banquinho recostado à parede ao fundo, o observava, não sei ao certo por que razão, esperando que num momento qualquer ele se revelasse. Mudo, marchava rumo à saída.

Alguém havia sugerido que o apelidássemos de Esfinge, mas os nós, sagrado fosse, começaram a se dissipar dia seguinte. Ele pisando à porta com violão a tiracolo. Os olhos denunciando um calibre a mais de álcool no sangue. E o que vi instantes depois seria pura atmosfera de arrebatamento: o bar se calando à melodia que abraçava um rio de palavras novas, parecendo roupas de primavera. Se enxergava magia naquilo.

Então, agora éramos eu e um conjunto de hipnotizados naquela alegria de botequim. Logo todos formando uma roda em saudação ao ritmo atrevido do samba. Mais duas, três canções, e arrisquei a pergunta: “De que compositor são essas músicas?”. Ele me mirou ligeiramente atravessado. Uma pausa para tossir. O lenço. O cigarro reposto. “Inteiramente minhas”.

Balbuciou, e emendou pronto com um novo acorde. Dava a senha de que, com ele, essencial não era conversar. Mas tão simplesmente cantar. E como cantou. Varamos a tarde. Atravessamos a noite. Já era madrugada quando o deixei, amparado, à frente da pensão simples na região hospitalar da velha Belo Horizonte. Não falava, não falávamos, coisa com coisa. Ainda assim, protegia o violão como a um diamante nobre.

Fui revê-lo à mesma mesa no domingo. Desta vez com um sorriso discreto, assinalando o desvão em seu queixo. Entre uma e outra xícara de café com leite, contou breve: acidente de parto. Notei pequeno constrangimento e coloquei minha história em campo. Eu, Malaquias, filho de fazendeiro e bordadeira, servidor público, escritor frustrado. Ele riu. E se retraiu. Respeitei, e mesmo me diverti com o sujeito variando do amargor à comédia.

Indaguei por seu nome. “É o que menos importa, porque estou aqui apenas de passagem”, limitou-se. Provoquei: “Pela cidade ou pelo mundo?”. Ele piscou longo, respirou fundo, pisou e rodou o salto sobre o cigarro, como subterfúgio a que não respondesse. Da partida, me recordo de seu abraço terno, do aceno de mão na virada de esquina. Viajou e não mais o vi.

Soube como se chamava tempos depois. Pelos jornais. Tinha 27 anos. Fora batizado de Noel. E, como tradição entre os poetas ainda naquela década de 30, morreria por amor ou tuberculose. No rádio, identifico uma de suas canções. Falam, no noticiário, que o clima na Europa é de guerra. Pouco creio. Prefiro pensar em Noel. Em seus dedos, seu violão. Suas palavras. Belos como uma rosa.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras

4 comentários:

  1. Se Noel ainda estiver vagando por aí, quem sabe não dá uma lida nesse texto.
    Já li muitas "pinturas" sobre Noel, mas essa está
    linda.
    Parabéns!

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  2. Ah, Noel Rosa merecia isso, essa crônica amorosa ao maior dos nossos poetas-cronistas que criou obras-primas com facilidade e inspiração de gênio. Parabéns, Murta!

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  3. Você escolheu a linguagem certa para falar do poeta da Vila. Sua crônica é pura poesia. Quem nos dera o poeta pudesse ler este seu texto tão terno, que tem tanto a ver com ele, Noel.Parabéns!
    Abraços

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  4. Deduzi ser Noel Rosa imediatamente, quando disse: "inteiramente minhas", devido ao lenço de tuberculoso. Quando falou do traumatismo de parto, certeza absoluta. Morto tão jovem e deixou a sua marca para sempre. O que teria feito caso vivesse mais? Homenagem das boas Eduardo. Muito bem!

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