segunda-feira, 30 de novembro de 2009




Sem calço

* Por Daniel Santos

Na maioria, homens. Homens de todas as idades e procedências. E também mulheres, estas mais raras. Todos coxos, manquejavam com esperto talento para merecer piedade alheia – uma acusação de longa data.

Ou não era bem assim? Porque, afinal, muitos deles socorriam os necessitados, se bem sempre mancando; segundo os detratores, para acentuarem o pessoal martírio. Reiteravam, assim, a publicidade de si.

No entanto, longe de observadores, moviam-se normalmente e, poucos sabiam, com certo alívio por escaparem do mundo da eficiência. Não conseguiam ou não queriam seguir junto; daí, o pé atrás. Ou torto.

Criaturas sem calço, amargavam geral menosprezo que evoluía a insultos, espancamentos até! Mas não reagiam, que tal lhes reforçava a condição submissa e, incrível parecesse, conseguiam tirar volúpia à dor.

Reunidos agora no mesmo pavilhão, caminham lado a lado sem tropeços, solidários entre si. Espie alguém pela fresta, voltam a manquejar. Nada infringiram, mas pedem clemência e, se conseguem, ganham o dia.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

7 comentários:

  1. Despertar a piedade humana ou a
    sua ironia fina é mais fácil do
    que impor respeito.
    Ótimo texto Daniel
    Abraços

    ResponderExcluir
  2. É a força dos fracos : gostam de despertar piedade. Expõe mazelas e sofrimentos como forma de manipulação. Cruzes !!
    É a verdade nua e crua, Daniel.

    ResponderExcluir
  3. Pessoas carentes de afeto,eles fingiam para despertar a piedade alheia???Incrível, Daniel.
    Beijo
    Ris

    ResponderExcluir
  4. Duas lembranças me atingiram em cheio.

    Uma prima que manca, apaixonou-se por um rapaz que "mangava" dela, em sua ausência. Imitava a cocha dizendo: "aqui está alto, aqui está baixo, aqui está alto, aqui está baixo"...

    No centro de Belo Horizonte, no tempo em que eu fazia residência médica e morava lá, tinha um homem com uma imensa ferida que cobria toda a perna. Ele ficava ba porta de uma igreja. Todos os dias ele escarificava a ferida com uma pedra até sangrar copiosamente. Eu vi isso diversas vezes e me enojava com o expediente que os excluidos são obrigados a se valer para conseguir a piedade alheia.

    ResponderExcluir
  5. errata: paciência Mara, coxa é com "X".

    ResponderExcluir
  6. Daniel,
    Acho que nós leitores também nos sentimos meio sem calço, incertos de até onde vai a fábula e o que permanece literal. Impossível saber se o aleijão é apenas físico ou se transcende para o moral. Na dúvida, uma certeza: brilhante texto e brilhante Daniel!

    ResponderExcluir
  7. Obrigado a todos, é sempre um grande prazer ler esses comentários, principalmente pq anulam a mediocridade das segundas-feiras.

    ResponderExcluir