segunda-feira, 23 de novembro de 2009




Sem brevê

* Por Daniel Santos

Quando, altas horas, a casa inteira imergia no sono, ele despertava qual pirilampo que costuma levar luz ao desamparo da sombra e, então, como ainda ignorasse o que podia e o que não podia fazer, saía do berço.

De gatinhas, alcançava a cadeira junto à janela do décimo andar, subia nela e, já no parapeito, maravilhava-se com as luzes da cidade – manchas claras como as gotas de leite que lhe escapavam da mamadeira.

Tudo lhe parecia, então, possível. Embora ainda não soubesse andar, batia palminhas de contentamento e, naquele instante de liberdade, atirava-se ao espaço sem jamais lhe passar pela cabeça o risco que corria.

Não, ainda não aprendera a Lei da Gravidade que torna a todos prudentes e até medrosos. Ele não sabia de nada. Por isso, voava! Voava mesmo sem asas, pois ignorava a necessidade delas para tal expediente.

Só muito depois, voltava ao berço. Adormecia com a idéia de um dia contar tudo aos pais. Por que não voavam, em vez de andarem todo o tempo de lá para cá? Talvez, assim, a vida lhes fosse mais leve, afinal.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

9 comentários:

  1. Delicado, leve, sutil...
    Quando desconhecemos o sentido e não nos prendemos
    a conceitos, tudo fica mais fácil.
    Lindo Daniel
    beijos

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  2. Seu conto me lembrou "O Mistério do Coelho Pensante" de Clarice Lispector. Como é bom iaginar.Dentro do mundo da imaginação tudo é possível: voar,estar ao lado da pessoa amada, conhecer terras distantes...Tudo.
    Lindo texto, Daniel!
    Beijos
    Ris

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  3. Como a vida torna-se mais leve quando não temos " noção" do perigo.
    Gostei muito.

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  4. Lembrei-me imediatamente do meu filho hiperativo. Ele voava não apenas na imaginação, mas dava pulos em buracos perigosos na tentativa mesmo de voar. Ainda hoje faz esses voos razantes e outros nem tão razantes assim. Enfim, a impulsividade e a hiperatividade física e mental, além da desatenção-para coisas chatas-, caracterizam esse transtorno(TDAH).

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  5. Núbia, Ris, Cel e Mara, gratíssimo por essa atenção que não tem preço, embora enriqueça -e muito!- o que escrevo. Asas para vcs.

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  6. Daniel, sua pena ganhou asas e nos legou esse voo maravilhoso. Cinco mágicos parágrafos a cinco mil pés de altitude. A realidade que continue lá embaixo, que é o lugar dela. Rasteira, mecânica e sem graça. Parabéns, amigo.

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  7. Grato, mestre Marcelo, a quem sempre observo escrevendo no cume do Everest sobre como tirar folego à vertigem.

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