sábado, 21 de novembro de 2009




O Nick não é veado

* Por José Paulo Lanyi


O Nick é o meu cachorro. Um poodle. E não me venha com essa história de que poodle é viado. Poodle é poodle. Um cão. Viado é gente (vem de transviado, sabia?). E veado (com “e”) é o nome dado aos ungulados da família dos cervídeos, a única, entre os artiodátilos ruminantes, que tem espécies sul-americanas; são animais muito velozes e tímidos, de carne muito apreciada.

Note, o Michaelis sabe o que é um veado.

Mais adiante vejo outra definição, que tem familiaridade (intimidade é melhor) com aquela outra, com a letra “i”: “2 ch Pederasta passivo; vinte-e-quatro”.

Pederasta é como os militares qualificam os homossexuais da tropa. Exemplo das forças armadas gregas (traduzido para o português): “O major Ariotéclato foi flagrado em ação libidinosa com o cabo Teocrástino. Os dois pederastas serão expulsos do Exército!”.

Agora... Vinte-e-quatro? Termo pejorativo, sem dúvida... Em toda a minha vida, não me lembro de ter chamado, nem de ter sido chamado de vinte-e-quatro...

Exemplos desse evidente preconceito:

No trânsito:
- Olha aqui, seu vinte-e-quatro, você me fechou, vou te dar uma bifa!

Na casa noturna:
- Ei, bêbado, vinte-e-quatro de merda! Vaza rápido ou lhe quebro a cara! (segurança ilustrado, hã... “lhe quebro...”)

Na fila do açougue:
- Tá de olho na minha mulher? Vai morrer, seu vinte-e-quatro!

O Nick é o meu cachorro. Um poodle. Mas daqueles poodles tosados “por igual”, como a gente diz no pet shop. Nada daqueles adereços de madame, aquelas pulseiras e polainas de pêlos frescos. Eu e o Nick não somos homofóbicos. Temos amigos gays. Mas a César o que é de César...

Deixa pra lá, Júlio César não é o melhor exemplo...

Finalmente o Nick passou um fim de semana comigo, depois de um ano e meio da separação. Minha e da minha ex. Deixei o cachorro com ela. Fiquei com saudade dele.

Na época, tive que dividir as despesas com um amigo meu. Não podia levar o Nick... O Nick é o que eu chamaria de... temperamental. Agora moro sozinho. Ele pode barbarizar.

Listo aqui algumas das suas idiossincrasias:

1- Exige atenção integral e absoluta:

É um Kaká (poodle, lembra...) das quatro patas. Traz a bolinha, abre a boca e empurra o brinquedo para os nossos pés. Implora, sem trégua, um bate-bola. Você joga, ele pega e traz. Mais ou menos 23 mil vezes ao dia. O Nick é um jogador de futebol. De raça. Amor à camiseta que usa, tosado, em tempos de frio. Um dia, perguntei-lhe, como a testá-lo: - Nick, você é um são-paulino?

Ele me mordeu, revoltado, pegou a minha camisa do Vasco e sacudiu-a com as mandíbulas que compunham a sua cara de cafajeste. Não foi difícil entender o que quis dizer.

2- Sabe reivindicar os seus direitos:
Se não for satisfeito em suas ambições, começa a resmungar... Você responde com um:
- Dá um tempo, Nick...
Ele insiste.
Você também: - Nick, não me encha o saco!
Ele reitera.
Você: - Cai fora! Se manda!
Ele sai... Olhar torto, corpo enviezado. Segundos depois (o suficiente para a urinada na porta, no tapete, em cima da cama...) ele vai se proteger da tormenta que se aproxima, entrincheirado em sua casinha.

3- Gosta de maçã:

Nunca tinha visto isso. Um cachorro que gosta de maçã... E do que mais vier. Um autêntico limpa-trilho. Comemos comida japonesa no domingo. Dei-lhe atum e fiquei com medo da sua reação... digestiva.

Antes, ele olhou, deu uma cheirada no peixe, recuou, olhou para mim (“Tá me tirando?”- cheguei a ouvir...), cheirou de novo, deu um passo atrás...

Eu: - Come, filho, manda ver que eu garanto!

Deu uma volta na sala, distraiu-se com um não-sei-o-quê, voltou, cheirou o atum, ensaiou, mordiscou, cheiro, mordeu, comeu tudo. Exultei quando devorou o segundo pedaço, pouco depois. O Nick é um aventureiro...

Você deve se perguntar por que abri este texto com uma assertiva tão.... polêmica. Respondo: Meus amigos são uns engraçadinhos. Basta eu dizer que tenho um cachorro, que faz tempo que não o vejo, que...

Basta saber ou lembrar a raça para delinearem o sorrisinho... - Hummm.... Poodle, é...?

Ciumeira (o Fernando Mariz Masagão e a Mariella Augusta, colunistas deste espaço, são dados a isso) ... O Nick é o melhor amigo do homem. O meu melhor amigo, portanto.

Aquele que poderá me acompanhar na sarjeta, um dia. Se for preciso, ele virá... Desde que tenha uma bolinha para jogar.

Os outros não passam de seres humanos, esses que não o acompanham na sarjeta (salvo quando estão bêbados nas noites de sábado), nem jogam bolinha embaixo do viaduto...

Nick, este é só o início, meu velho! Mostre a pata para eles!


* Jornalista, escritor e dramaturgo, autor do romance "Calixto-Azar de Quem Votou em Mim", do romance cênico (gênero que criou) "Deus me Disse que não Existe", da peça "Quando Dorme o Vilarejo" (Prêmio Vladimir Herzog) e da coletânea "Teatro de José Paulo Lanyi e Outros Loucos", todos da editora O Artífice. Compõe música clássica com o paulistano Flávio Villar Fernandes.

3 comentários:

  1. Amo os animais, mas confesso que tenho uma certa implicância com essa raça...o seu pode até ser diferente, mas os da minha vizinhança são chatos e estressados.
    Já tive vários cachorros, uns com pedigree e outros sem...os amei com intensidade e acho que era correspondida. A última se foi olhando pra mim...
    E, com certeza sei que nunca estarei sozinha pois o amor deles é incondicional.
    Beijos

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  2. Ótima e divertida crônica sobre a defesa da virilidade do melhor amigo, no que o autor faz muito bem. Timing, ritmo, humor e afeto em doses exatas, sem uma pulga a mais. E a foto é do Nick? Mas ele é mesmo uma gracinha. Mesmo que derrame água forada bacia, continuará a ser mesmo uma gracinha. Parabéns.

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  3. Que gostosura de texto e de cachorro! Quero conhecê-los mais, José Paulo.

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