quarta-feira, 21 de outubro de 2009




Zé do Carmo tem personagem novo

* Por Marco Albertim

Não há nada de novo nos pincéis e tintas de Zé do Carmo. Ele os mantém ao lado da loja, um anexo de pouca monta; um anexo uterino, que gesta por nove, dez meses, calungas tão irreais quanto vivos, cujo legado move-se sob o bulício de um grito por trás de uma moita selvagem. O laboratório de Zé é tão fêmeo quanto um útero moço; demorou nove meses para, enfim, parir uma iabá do sexo masculino. Pariu-a (o) em sessão fechada, feito cerimônia secreta do candomblé; deu à luz, rebatizou-a (o) com tintas luzentes, pôs-lhe duas asas nas costas, mostrou-o de perfil, um olho aceso, outro oculto, o juízo prenhe de crenças. Zumbi dos Palmares, o pintor ressuscitou-o como Zumbi Anjo. Achou pouco, dotou-o de promessas messiânicas, com atributos de libertador. Zumbi cultuou divindades bantas, nunca foi Moisés, talvez tenha ouvido falar no patriarca quando estava no cativeiro. Zé do Carmo, entranhado no feito do africano, legendou o quadro com O Moisés do Quilombo; feito uma efígie numa moeda.

Zumbi foi rei. Ele, Zé, pôs-lhe um manto vermelho nas costas, nos ombros, como convém a toda majestade. O pescoço, circulou-o com um colar de dentes afiados de alguma fera, jacaré por certo. O cabelo é tão pixaim quanto basto, surrealista na porção abaixo e em volta da orelha. O nariz é anguloso, comprido, fino, com narinas dilatadas. A boca segue a linha do nariz, beiços finos, compridos. As asas, não se veem entranhadas nas costas, inda que subam quase acima da cabeça de Zumbi, no mesmo relevo da altura do negro. Juntando tudo, há personalidade no perfil de Zumbi; tanta quanto o juízo sossegado do pintor, sentado todo domingo numa cadeira ao lado da estátua do beato, na loja, espreitando algum comprador.

Reencontrei-o num domingo, quase dormindo na cadeira. Abraçou-me devagar, com os braços magros, ocultos na camisa amarela de mangas compridas.
- Tá dormindo, Zé!?

Ele sorri contrafeito, mal disfarçando o embaraço por ter sido flagrado num ócio nada comum ao engenho do artista. Está magro, franze a testa antes de dizer a palavra; há esforço de memória, medo de se deixar devassar, de juízos estranhos à exaustão do criador.
- Zé! Você sai de casa para fazer feira na rua, junto com o povo?
- Saio todo sábado.
- E o que você observa além dos preços aumentando ou não?
- Vejo o povo parado e andando, o rosto de cada um...
- Estes rostos, Zé, o que você faz com eles, além de reter na memória?
- Ponho nas minhas telas.
- O rosto deste Zumbi, você catou na feira?
- O rosto deste Zumbi é a soma de todos os rostos que vejo na feira.

Não há alegria explícita no rosto de cada personagem, há convicção, crença na opção que cada um fez com o traje de beato, a viola muda na tela, soltando notas próprias de cantadores. A imaginação do observador corre solta, como os pés dos andarilhos Baltazar, Belchior e Gaspar, trazidos da Judeia por Zé do Carmo; sem mirra, sem ouro nem incenso, mas cada um com chapéu de palha, vestidos com uma bata roxa, igual à de beatos pregadores. Os pés nus, como convêm à pobreza, ao costume telúrico do contato físico com a terra seca, quente e fria do sertão.

Zé do Carmo já foi um negro de porte, com omoplatas e peitos largos. Há dúvidas quanto a proveito dos dotes físicos para o galanteio a diferentes mulheres; não toca no assunto, é reservado, assunta consigo próprio, imaginando criaturas, entes cavoucados no folclore, respeitados pelo povo, vivos na literatura de cordel. Sua loja é uma galeria de tipos, todos ao lado de folhetos de cordel, de livros com histórias de trancoso; nenhuma havida, tidas como reais, porque engenhosas em feitos, façanhas. Nas prateleiras, paredes, nenhuma grita, mas intima a inquirições diversas, incitando sonhos em juízos incrédulos. Ele, o artista, passa o dia mudo, levantando-se da cadeira na hora das refeições feitas pela única mulher com quem se casou. Ela está envelhecida, gorda, cevada por carnes de alto teor calórico; não se incomoda, posto que a rotina entre a cozinha, a sala, o quarto, a loja e o ateliê do marido, não a estorva, não a exaure. O casal criou o filho único sem mimos, sem dádivas inúteis.
- Seu filho estuda, Zé? – pergunto, temendo ser flagrado com suspeitas de que há ignorâncias na família.

Ele não me responde de pronto, não dá mostras de que o filho, também o filho tem um quê da genialidade simples do pai. Dá um pulo da cadeira, balbuciando dúvidas, desconhecimento quanto à ocupação do filho; mostra-se nervoso, distraído, quase me pede desculpas. Deus do céu! Inquieto-me. Se tivesse ficado calado, teria absorvido sem constrangimentos o juízo sereno de Zé do Carmo.

Ouço-o falando com o filho, na sala anterior à loja. A mulher intervém, também quer dá conta dos rumos do rapaz. Zé, de volta, senta-se e me dá a informação com resíduos do embaraço, com reparos mas satisfeito por não me deixar sair sem a resposta.
- Administração, ele estuda Administração...

O rapaz aparece, mostra-se tão comprido no tamanho quanto a ânsia do pai. O filho de Zé do Carmo é do tamanho da estátua do beato no canto da parede, só não tem a barba rala, descida sobre o peito. Zé sabe inspirar-se...

* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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