quarta-feira, 30 de setembro de 2009




O doce amargo do açúcar

* Por Mara Narciso

A menininha tem cinco anos, é fofinha, com pele clara, cabelos cor de mel, finos e encaracolados. É aquela criança que convencionamos chamar de gracinha, de tão delicada que é. A mãe deixa a menina na escola e vai para o trabalho, mas no final do dia pega a filha e podem ficar juntas um pouquinho.

Notou que a menina estava urinando muito e a toda hora. Olhava intrigada quando mais uma vez, e outra e mais outra, em um pequeno intervalo a criança pede para fazer xixi. Concomitantemente veio a sede intensa. Na hora de dormir pediu mais um copo de água. E de manhã a cama estava molhada. Então foi um susto, já que desde os dois anos a menina não mais urinava na cama.

A mãe não hesitou e a levou imediatamente ao laboratório para fazer um exame de sangue. Houve a confirmação do diabetes. A glicose estava muito elevada, mas não foi preciso internar. A endocrinologista mandou iniciar com as injeções de insulina imediatamente, antes que a alta do açúcar no sangue ameaçasse a vida da menina, que também tinha emagrecido.

Então começaram as instruções para bem cuidar daquela taxa de açúcar que sobe e desce ao sabor dos ventos. Foi indicada uma visita à nutricionista que prescreveu uma dieta. Sugeriu várias restrições, e também fixou os horários e as quantidades dos alimentos. É preciso obedecer com rigor para tentar evitar grandes flutuações da glicose.

Quando a criança acorda, a mãe faz o exame de ponta de dedo – a glicemia capilar –, para verificar a taxa de açúcar, e então calcula qual dose de insulina deverá ser administrada. Após a insulina, a menina alimenta-se dentro daquilo que foi pré-determinado, e só então pode brincar. A escola é na parte da tarde.

A mãe sabe que não pode atrasar nenhuma refeição, e nem fazer exercício com o estômago vazio. Antes disso é preciso comer. É necessário um equilíbrio entre a comida e a insulina. É como se a glicose estivesse numa gangorra, ora subindo, ora descendo conforme a ação da insulina, do alimento e do exercício.

A alimentação, a emoção, as doenças, especialmente a febre, são determinantes para fazer a glicose subir. Ao contrário, a diarréia e vômito, assim com exercício, e atraso nas refeições são fatores de abaixar a glicemia. Isso como regra geral, pois até os mais experientes cuidadores da glicemia surpreendem-se quando fazem tudo exatamente igual em dois momentos e o resultado vem muito diferente.

O maior medo é da hipoglicemia. Ela é o terror das mães de crianças pequenas com diabetes. É que a glicose normal é muito próxima da glicose baixa. Um pequeno deslize pode ser suficiente para que ocorra um desequilíbrio com uma baixa exagerada onde a criança poderá manifestar uma ameaça de desmaio e até mesmo um desmaio real, com convulsões. Para evitar isso, as mães fazem exames de glicemia de madrugada para assim quantificar a ação da insulina na hora em que o estômago está vazio, e os riscos são maiores. Os resultados baixos são tratados com alimento.

Na escola, a professora sabe fazer o exame de ponta de dedo, e ele é feito antes do lanche, ocasião em que a insulina é calculada e dada conforme a necessidade. Após alimentar, a criança vai brincar com as outras. No começo desse controle, a mãe olhava a filha mortificada, sentindo nos próprios dedos a dor das constantes picadas. Sabe que elas são imprescindíveis para evitar grandes mudanças, e as temíveis complicações, sejam as agudas que são os desmaios, sejam as crônicas que são as lesões da retina, dos rins, dos nervos e da circulação que ocorrem quando o tratamento é inadequado.

As consultas médicas devem ser frequentes, em vista da necessidade de mudanças nas dosagens da insulina e ainda nas trocas das marcas, pois o tratamento não pára de evoluir e novas insulina, mais fisiológicas são produzidas a cada dia. A mãe sabe que há as insulinas lentas que cobrem a situação no jejum e as insulinas ultra-rápidas que cobrem a glicemia na alimentação. Daí a necessidade de calcular as doses a cada refeição.

São tantas as variações da glicemia que a mãe diz com ar estafado: “a glicemia da minha filha oscila muito. Parece ser impossível conseguir uma redução nos picos e vales, de tanto que varia”. Mas ela já entendeu que isso não é uma particularidade apenas da sua criança, pois já pesquisou e se consultou com mais de um especialista, deduzindo que essa gangorra longe está de ser uma especificidade da sua menina.

Enquanto a mãe fala dos seus anseios, a filha olha pela janela, e se volta com um lindo sorriso dizendo que vai passear no shopping após a consulta. Está alheia e feliz, e não parece se preocupar com a nova realidade. A mãe sofre mais do que a criança. A menina já se habituou às picadas nos dedos, que já estão feitos peneiras de tão furadinhos, assim como com as injeções aplicadas com as práticas canetas e as difíceis restrições alimentares. A mãe, a cada perfuração em busca do sangue, sente doer dentro da alma. E ainda se tortura pensando em que está errando por não conseguir controlar o diabetes tão bem quanto lhe foi solicitado.

Passando pela porta, em busca da saída, a menininha despede-se sorrindo, com a sua graciosidade infantil: “tchau”! E acena com a mão direita cor-de-rosa, cheia de buraquinhos, naquela distância, invisíveis, como é invisível a ação protetora e angelical da sua jovem mãe.

* Médica, acadêmica do sétimo período de Jornalismo e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”

5 comentários:

  1. Mesmo que a vontade divina seja levar uma alma, cabe ao médico lutar pela cura do paciente e, nisso, reside seu supremo valor: o de fazer valer o afeto humano. Em 1994, passei um mês dentro do Hospital do Câncer despedindo-me de minha mãe que se foi, afinal, na véspera do Natal. Estou perplexo até hoje! E é a mesma a sensação ao ler sua crônica sobre o sofrimento de mãe e filha - algo que não merecem, certamente. E essa dor só faz doer, pq não tem explicação nem sentido. Que sina!

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  2. A linda menininha está alheia ao seu grave problema e a sua eterna luta contra a diabetes. Um dia ela vai tomar conhecimento...mas quem disse que ela não terá forças para suportar as adversidades da doença ?
    Triste história. Acontece mais do que imaginamos e sabemos. Cada um segue com o seu sofrimento. Com a sua dor. Com a sua luta. Assim como a felicidade, a dor é pessoal e intransferível.
    Beijos, Mara.

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  3. Pois é Daniel e Celamar, por mais chocante que nos pareça esse rotina de torturas, ainda assim é um avanço, pois quando eu comecei a lidar com meninos portadores de diabetes via chegar crianças quase mortas ao hospital, desidratadas, em coma e com extrema falta de ar. Muitas delas não sobreviviam. Com o exame em casa e o uso das insulinas de ação rápida, isso quase não acontece. A informação e a divulgação disseminada dos recursos furou os dedinhos, mas evitou mortes. Esperamos para breve uma maneira indolor de medir a glicemia. Agradeço a leitura e comentário.

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  4. Olá, Mara! Amei seu belo, leve e esclarecedor texto sobre um problema que é sério mas pode ser devidamente tratado e controlado! Quero também ler seu livro "Segurando a Hiperatividade". Vou procurá-lo! Parabéns! Abraços!

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  5. Sayonara, por se tratar de editora pequena, você o encontrará apenas na minha cidade. Peça ao Pedro meu e-mail e eu o enviarei para você. Obrigada pela leitura e comentário.

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