segunda-feira, 28 de setembro de 2009




De flores e amor sem cancelas

* Por Eduardo Murta

Alzira acolheu o batismo numa manhã em que o mais despojado sinal de primavera se anunciara na pequena Itaporé. A água sagrada namorando-lhe o contorno da testa, e da praça aportaram para confirmar, no entrefôlego: a camélia desabrochara. Um ó coletivo, e num segundo restariam pais, padrinhos e o religioso na sala miúda se entreolhando. Porque aquilo era vestígio de bênção. Uma flor que, contavam os dias, levara exatos 35 anos, sete meses e três semanas a que vingasse.

A gente retornou num alegre vistoso, embalando cantoria morro acima, até dar de novo com o batizado já se encerrando. A vela, enlaçada em fita amarela, variando de mão em mão, foi Bastiana, a parteira, quem quebrou o gelo. Falava num clarividente de arrepiar o encanto paterno. A menina, descrevera, havia nascido para amar incondicionalmente.

Devoraram-na com os olhos, fiados na máxima de que por nenhuma vez errara. Marieta, que fugiria com o circo; Euzébio, pistoleiro inclemente; Zé Coco, que tocava viola dormindo; Salvador, três vezes prefeito. Daí, pai e mãe foram preparando os corações para um desfecho que, sabiam, encerraria emoções capazes de subtrair-lhes ou de enfeitar-lhes o destino.

Ao incerto, decidiram se fechar. A menina, mesmo aos dias de festança, se apresentaria sem adornos, em meia reclusão: nada de penduricalhos ao cabelo, nem uma gota de perfume e, vestidos, só os que passassem longe dos tons florais. Mais: que não sorrisse a ninguém que não fosse mulher. Beirando os 5 anos, Alzira depreendera que não cumprir as normas era passaporte para o quartinho escuro e solitário do fundo de casa.

E luas à frente, na escola, suas órbitas se afogariam num choro de segredo à livre tradução da professora sobre o poema: a ausência do amor fazia definhar a alma. O verbo lhe era novidade, mas compreendeu o todo por inteiro. Assim, resguardou sentimento a 49 chaves, e amou Pedro, da primeira fila da sala. Amou João, do catecismo. Amou Leôncio, filho da vizinha. Amou Gaspar, neto do verdureiro.

E amando num ardor menino, sem cancelas, despedaçava-lhe aquela intangibilidade de não se poder revelar. Quando desceu à margem da ponte velha e pôs os pés no Rio Jequitinhonha naquela quarta-feira despretensiosa, a sensação de eternidade às águas lhe emprestava alívio doce. O de que, para além dela, havia vida.

Por dentro, suas crenças se esfarinhavam. Foi Jurema, madrinha, quem notou os primeiros sinais de palidez. Justo na festa de 8 anos, não dela, mas da camélia, com os botões rendendo atenção, fogos, discurso e namorico aos bancos da praça. Ela fixou bem a leitura na face da menina, e as olheiras soando cadavéricas lhe desarmaram. Conferiu as perninhas, silhueta de sabiá. Foi logo falar com comadre e compadre.

Deram de ombros. Preocupasse não, porque era fase, nada mais. Eis que Alzira empalitou de vez. Nem médico nem benzedeira dando jeito. A caminho dos 10 anos, pediu que família se reunisse ao entorno de sua cama. Que pai e mãe lhe lessem o poema “Memória”, de um certo Drummond. Ela não era mais que um filete, mal emoldurando a cabeça no travesseiro. Com ajuda da professora, feito entoassem despedida, leram: “Amar o perdido/deixa confundido/este coração./Nada pode o olvido/contra o sem sentido apelo do Não./As coisas tangíveis/ tornam-se insensíveis/à palma da mão./Mas as coisas findas,/muito mais que lindas,/essas ficarão.”

Naquelas vozes Alzira enxergou amor correspondido. Pediu colher de sopa. Pediu chance renovada. Pediu que pai e mãe, enfim, a libertassem. Nascera, afinal, a que vivesse de amar. Permitiram. É ela à pracinha, regando as camélias. Feliz. Sete filhos. Onze netos. Em desmedido, desprendido amor.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

Um comentário:

  1. Essa é das que inauguram linhagens, dinastias, uma oposição inteira à vida que insiste em fazer sentido. Mais um personagem de nácar e madrepérola, como os demais da tua oficina, caro Murta. Parabéns.

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