quinta-feira, 23 de julho de 2009




Meus porres prediletos

* Por André Falavigna


Está claro que não são todos meus. Gosto de beber, mas ficar constantemente de porre é coisa de gente que, ora bolas, não sabe beber. Ficar bêbado não tem nada a ver com tomar porres. Bêbado está quem, sob o efeito do álcool, amplia suas possibilidades num determinado plano e, nessas condições, dono de si ainda, é capaz de vislumbrar aquilo em que poderia se transformar caso não ponha tudo a perder. Já o sujeito imergido em porre está naquele universo no qual não pode tomar rédea de nada que lhe diga respeito e do qual, muitas vezes, vai voltar sem a mais mínima recordação.

Ambos os estados são provocados pelo consumo do álcool, não há dúvida. Mas, como o álcool não pode ser bom ou mau somente por ser álcool, temos aí outro de nossos exemplos que provam que o problema, via de regra, não são as coisas, e sim o que se faz delas. Na medida adequada – e pouco importa se, em tal dia, para tal pessoa, ela será alta ou diminuta – o álcool deixará bêbado. Na inadequada, resultará em porre. A escolha é de quem bebe. O álcool está inocente nessa história.

Ainda assim, seria muito injusto descartar a utilidade pedagógica e humorística dos grandes porres. Sem passar por qualquer grande porre, dificilmente alguém poderá compreender o valor da bebedeira transcendental. Somente confrontando o estado de baixa bebedeira ao de bebedeira elevada é que o sujeito aprende, quando tem aptidão para isso, a encher gostosamente a cara. E, durante esses episódios de aprendizado, vai-se divertindo os outros – coisa muito melhor do que, sei lá, usar o porre para apostar corrida de carros em vias públicas, ou tomar coragem para mexer com mulher acompanhada.

As possibilidades são inúmeras. Uma tia minha escovou os dentes com Gelol. Conheço quem tentou o mesmo com Gel Bozzano. Um amigo nosso cujo nome manterei em segredo fez do berço da filha – ocupado, diga-se de passagem – vaso sanitário, acreditando do fundo do coração estar no banheiro, correto e preciso. Ronaldo, o Fenômeno, foi à caça e voltou com três latagãos vestidos de mulher, um deles hoje morto em decorrência de AIDS.

Parece mau, mas pode ser bem pior.

O Seo Cruz, por exemplo. Sim, o titular do popular, popularíssimo blog palestrino “Cruz de Savóia”. Isso, esse selvagem voluptuoso, destruidor de reputações, homem fértil, voraz e incontrolável, cheio de inimigos e admiradoras secretas. Ele mesmo. Comemorou a volta do Palmeiras à Série A desfazendo-se de seus bens de uso pessoal. Uma coisa louca.

Tudo começou com Raphaello (ele é Seo Cruz) alvejando o próprio olho com pimenta calabresa moída e curtida em azeite ancestral. É verdade. Perguntem ao dono do Loteria Palestra, em Perdizes, à época Parque Antáctica Bar e ainda na Aclimação. Chama-se Izidoro Loprieto. Ele, homem confiante e confiável, confirmará tudo. Confirmará também que, uma vez recuperado do incidente causado pela tentativa de apimentar as boas porpetas recheadas servidas ali (Seo Cruz, indignado pela postura conservadora do recipiente – cuja abertura estava obstruída por material ressecado – bateu o fundo do inofensivo vidrinho no tampo da mesa, com vigor e ternura. O vidrinho reagiu cuspindo-lhe no olho direito), nosso homem de porre voltou do lavatório à mesa, encharcado, e pediu mais porpeta. Recheada. Com gorgonzola. E quis apimentá-la. O vidrinho hesitou, escaldado pela experiência anterior. Novamente instado a oferecer o melhor de si, segundo o mesmo método draconiano anteriormente descrito, cuspiu novamente no agressor ensandecido – desta feita na vista esquerda. Meia hora depois e outra vez curado – ou quase –, Seo Cruz desistiu de porpetas e partiu para cachacinhas básicas. Eufórico, saiu em buzinaço pelas vias elevadas da cidade atirando ao alto da madrugada fria tudo o que lhe viesse à mão – copos de plástico, latas vazias, jornais velhos, prótese dentária superior, desaforos, honra e dignidade. De tudo isso, muita coisa não fez mais falta, muita coisa se pôde recuperar, mas – com mil demônios! – dentre estas últimas, a prótese foi a única doer-lhe no bolso.

Mas não foi só ele. Eu também, em Florianópolis. Révéllion passado. Fomos a certo bar perto da Barra – corrijam-me se for o caso – montado pela Eisenbahn, aquela cervejaria de Blumenau. Só serviam essa cerveja, sob inúmeras apresentações. Gostei de todas. Acho que o problema foi aí. Eram umas vinte. Além disso, a companhia era a melhor possível e tudo o mais colaborava com a formação de ilusões perigosas; o bar era bonito, as atendentes bonitas, a Jovem Esposa estava lindíssima, o mar era bonito, as mesas e cadeiras eram bonitas, tudo era bonito. Nesse clima, e muitos litros depois de absorver tanta beleza, fui ao banheiro – e que banheiro! Recordo-me de ter pensado: “Poxa, que banheiro bonito!”, e de ter partido animado para o bonito mictório espelhado, com cascata e tudo. Mijei farta e violentamente, durante longos minutos de prazer estável e alívio crescente nos quais diverti-me desenhando ousados riscos ácidos contra toda a superfície sanitária. Ocorre que, conforme o belo e dourado ato foi se aproximando do final, comecei a achar o mictório meio estranho. A cascata era bastante baixa para mictórios, e algo fraca também. Já havia visto mictórios espelhados antes, mas nenhum cuja corrente de água fosse tão mesquinha que nos permitisse observar pelo espelho, com precisão discoverychanneliana, a própria urina jorrando pelo próprio orifício da própria uretra. No final das contas, um exame mais atento fez-me ver que havia urinado quente por toda a extensão da bonita e espelhada pia ali instalada. E bem instalada. Tão bem que foi capaz de proporcionar-me, inclusive, a imagem refletida de sólidos mictórios dispostos, lado a lado, bem atrás de mim. Pensei em lavar as mãos neles, mas achei melhor correr de volta à mesa antes que alguém me interrompesse. O milagre que fez com que ninguém, numa cervejaria, precisasse usar aquele banheiro durante todo aquele tempo é, acredito, inexplicável. Ainda assim, explica muita coisa: por exemplo, explica o fato de eu estar aqui, livre e escrevendo toda sorte de barbaridade, e não preso ou soterrado nas areias do sul. Que coisa.

O fato é que essa conversa toda me deixou tenso. Preciso descarregar. Estou agora mesmo ligando para o Seo Cruz – hoje tem Palmeiras no Serra Dourada e precisamos unir pensamentos positivos. Aproveito a ocasião e relaxo. Creio que posso providenciar feijão amigo, alguma verdura refogada com honestidade e bacon e, é claro, qualquer coisa assada e que esteve viva até ontem. Pensando bem, vou arrumar alguma cerveja gelada. Não há o que temer. Servirei pimenta desprendida e calma. Minha casa tem teto e dele, para o alto, nada passa. E o banheiro...

Bem, o banheiro eu já conheço direitinho.

(*) André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal, http://ofalavigna.blog.uol.com.br, no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.

2 comentários:

  1. Muito poucos conseguem urinar de forma tão teatral, hilária e relaxante. Não se trata de uma micção comum, mas de uma senhora "mijada", volumosa, por ser resultado do efeito diurético do alcool, e um sucesso retumbante, por passar pelo crivo, não do mictório, mas da sensibilidade vocabular de Falavigna.

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  2. Não tenho recebido notícias tuas, mas fico feliz em "ler-te" tão bem disposto e a mijar lindamente.

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