segunda-feira, 20 de julho de 2009




Adeus à privacidade

* Por Mara Narciso

“É por causa do santo que se beija o altar”. É preciso tolerar o transtorno da obra para usufruir da residência reformada. Conviver com pedreiros dentro da casa habitada é o caminho mais curto para se enlouquecer, mas será uma loucura necessária e até mesmo bem-vinda.

O computador trava e o técnico vem olhá-lo. Fica vasculhando por pelo menos duas horas, em busca do veredicto e da solução do problema. Durante esse tempo, não é raro o dono ficar aflito para ver o término do conserto, pagar o profissional para a casa voltar logo à rotina. A resolução das avarias domésticas gera desconforto aos moradores devido à permanência dos prestadores de serviços no local. Ficam-se apreensivos com essas invasões, pois os assaltos sucedem-se, e diante desses perigos ter gente de fora em casa é uma ameaça.

O home care do meu plano de saúde tem na equipe médico, enfermeira, fisioterapeuta, nutricionista e assistente social. Costumam avisar que farão visitas, mas nem sempre isso ocorre. Então, pode acontecer de eu estar saindo e encontrar com um desses profissionais no corredor da minha casa. No começo tivemos conflitos, já que chegaram mudando tudo. Falei que no tratamento do meu pai há o que quero fazer e o que é de fato factível. Então eles se acalmaram e aceitaram os limites que lhes solicitei.

Fora o pessoal do convênio, há os técnicos em enfermagem, que são três, numa cobertura de 24 horas. Após dois anos e meio com eles em casa, posso dizer que me acostumei, já que transitam livremente por quase toda a moradia. Quando alguém me diz imaginar como deve ser o desconforto de ter estranhos em casa, eu digo que quem não vive o problema, longe está de entender a situação. Não é um adeus à privacidade, mas uma violência insuportável: quase um estupro. E já ouvi que pior seria se eu tivesse de fazer o serviço deles. Não gostei, e considerei o comentário uma grosseria.

Esqueci-me da crítica, só que hoje de manhã tudo veio à tona, mas com outro enfoque. Numa conversa com uma senhora, muito religiosa, o ponto nevrálgico foi novamente tocado. Num desabafo, com direito a choro, conta-me a história. Teve uma filha com paralisia cerebral, que viveu um ano e meio. Alegra-se pela oportunidade de ter vivido essa experiência. Desde a morte da menina, contratou uma mulher para cuidar do túmulo, que visita com freqüência. Um dia, após fazer o serviço no cemitério, a cuidadora foi visitá-la. A contratante, uma maníaca por limpeza, ficou preocupada com o caminho de terra vermelha que a outra deixara no chão. Nem ouvia direito o que a mulher dizia, pois os olhos teimavam em se fixar nas marcas de pés no assoalho, e já se imaginava limpando-as. No entanto, enquanto conversavam, veio-lhe à mente uma compreensão diferente do que se sucedia: os rastros indicavam a presença de quem cuidava com carinho do jazigo da filha. Essa visão a aliviou, e o fato de o chão estar sujo, não mais tinha importância, sendo superado pelo seu nobre significado.

Vendo por esse lado, quem me criticou estava certo em parte, porque por mais desconfortável que seja ter estranhos em casa, são eles que possibilitam a minha tranquilidade. Sem os técnicos, a vida aqui seria impossível, já que não dou conta nem mesmo de virar o meu pai na cama, quanto mais de levantá-lo. O que dizer dos outros cuidados como banho, comida, remédios e sondas? Isso quando ele está normal, só com a tosse e a falta de ar. Procuro nem pensar nos frequentes dias de diarréia.

Não vou fingir que absorvo bem o fato, mas, habituada como estou, esforço-me para me queixar só um pouquinho.

* Médica, acadêmica de jornalismo e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.

4 comentários:

  1. Mara

    Quanta sensibilidade neste texto. Vivi esta realidade durante oito anos, e pra mim, foi uma pós graduação de vida. O que o sofrimento de um doente terminal nos ensina, não aprendemos em nenhuma escola. A duras penas a gente aprende que 90% do que acontece em nossa vida não tem a importância que lhe damos, e que a vida é aquilo que Gonzaguinha disse tão bem. Agradeço a Deus o que aprendi cuidando dos meus pais.

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  2. Risomar, agradeço o ensinamento do comentário. Aqui já se vão cinco anos. Hoje, devido a insuficiência renal, vai a nefrologista. Acredito que será indicada a hemodiálise. Só faço uma pergunta: para quê? É muito triste.

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  3. Males necessários da vida moderna: quem não os tem de enfrentar? De uma goteira a um paciente crônico, somos feitos reféns de gente que nunca vimos a cara nem conhecemos as intenções. Seu texto é verdadeiro e aborda o problema com singular propriedade. Parabéns.

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  4. Marcelo, você falou tudo: quais seriam as intenções? Nem sempre são " as melhores possíveis". Obrigada pelo comentário.

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