segunda-feira, 22 de junho de 2009




Um tiro atravessou o destino de Zé Clóvis

* Por Eduardo Murta

Braseiro rompendo a cortina de escuridão, no meio do nada, era Zé Clóvis. Prezava ícones de puro macho. Se orgulhava das gotas de querosene na crosta da unha emprestando claridade aos atalhos rumo ao vilarejo. Notem como incendeia os cigarros de palha: os fósforos detonados à sobrancelha esquerda, com naturalidade hollywoodiana. Era tática para chocar cristãos novos. E Valdeza não disfarça o espanto. As órbitas viajando ligeiras por toda a circunferência ocular junto à cena.

Ah, descontrole infeliz. Foi justamente nela que se pregaram os olhos do destemido. Escabrosos, num primeiro momento, como se houvessem descoberto uma indecorosa espiã. Gélidos, em seguida, como insinuassem uma atmosfera de confronto. E incandescentes, por fim, os músculos faciais abandonando a postura bélica. Tudo agora cheirando a convite para contradança.

Amaldiçoada fosse aquela circunstância. Ela queria era se desvencilhar do emaranhado em que se metera. Desviou a mirada, brusco. Assentou num ponto neutro da pracinha e simulou interesse súbito na conversa chocha da mãe: amenidades repisadas sobre a chuva que nunca vinha, o milharal à míngua. Vigiou, a que não se desse por surpreendida. Conferiu, canto de visão, e lá estava ele. Binóculos congelados nela.

Estremeceu. Tomara medo desde o dia em que lhe fora contado em minúcias: palitava os dentes com espinhos de mandacaru, dormia em camas de pregos, feito fosse faquir, e afeiçoara bandos de urubus junto a seu cercado. Homem estranho, ele. E, contrário do que muita gente o pintava, feições esqueléticas. Os ossos lembrando cadáveres desamparados.

Tarde já era, porém. Ele cruzou a fronteirinha que terra que os separava. Não sem antes se fazer perceber. Desempoeirou as botas, ajeitou os botões da camisa. Pigarreou. Estiloso, lembrando propagandas de cigarros à faroeste, levou o fósforo à sobrancelha, e logo o odor de fumo de rolo tomou o ambiente. A mulher sentiu o hálito empertigado, quando a frase veio assim, como do nada: “Você agora é minha”.

Valha-me, Deus, e o que fazer? Coração e lábios em sobressalto, buscava uma saída. Se render ou blefar. Blefou. Não só não iria, como marcou data, hora e lugar para o duelo. Como assim? No tiro? O homem gargalhou. Valdeza apartou. Que não risse, porque era sério. Aquilo dobrou as costelas de Zé Clóvis. E o emparedou. Recusando, seria chamado de covarde. Perdendo, capitularia diante de uma donzela. Vencendo, daria fim a uma mulher a quem cobiçava.

Ambos, no fundo, sonhando com alternativas. Ela tratou de espalhar, sem jamais ter tocado um revólver, que vinha treinando com Vô Calixto, caçador implacável das matas locais. E o desafiado se deixou estrategicamente ser visto saboreando farinha com pólvora na bodega do mercado. Temperava o paladar de matador, fez saberem. Naquela quarta-feira, sol a pino, chegaram por cantos opostos à praça. Um silêncio assombroso, que se ouvia o ritmo cardíaco de cada um.

O macho até em esporas. Óculos escuros. Vestes negras. Ela, surpreendentemente, vestido em tom floral. Sombrinha rosa. E.... e desarmada!!! Azar que fosse assim, porque o agente funerário já iniciara o 10, 9, 8, 7... Zé Clóvis azeitou a ponta do 38 com cuspe e mandou bala. O primeiro tiro atravessou o tecido da sombrinha. Valdeza imóvel. O segundo estraçalhou-lhe a ponta do brinco. Terceiro, quarto e quinto passaram no vazio. O sexto ricocheteou no sino da igreja.

Ela marchou esbaforida em direção ao derrotado. Ares de humilhação. Esbofeteou-lhe a face com suas luvas de seda. E decretou: “Você agora é meu”. Pôs rédea e avental no machão, com ordem de que não lhe tocasse um só dedo. E ai dele se o café não estivesse à cama às 7, o almoço pronto às 11, e as roupas alvinhas no varal. Marcaria segundo e definitivo duelo.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

3 comentários:

  1. Acho que era isso mesmo que ele queria. Macho, quando passa dos limites, quando ostenta macheza excessiva, não passa de maricas. Nos sertões, nas geraes, ou no Palácio de Buckingham, o cenário diverge, mas o desejo obscuro, recôndito, acaba vindo à tona ... e uma alma caridosa o realiza. No fundo, Valdeza era isso mesmo, uma alma caridosa. E Zé Clóvis ... hehehe ... encontrou a sua cara-metade. Parabéns, Murta!

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  2. E o destemido Zé Clóvis tornou-se um Zé Mané. O verdadeiro amor transforma....hehehhehe!

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  3. Casal macho resolve tudo na bala, no duelo. Acabou como queriam começar: ela no comando, e ele servil. Algumas vezes podemos parecer exatamente o oposto do que realmente somos ou queremos ser. Depois do duelo de amanssamento, foram felizes para sempre.

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