terça-feira, 30 de junho de 2009




Passando a limpo

* Por Risomar Fasanaro

Em alguns momentos da vida sinto que preciso parar e passar a vida a limpo. Faço uma limpeza nos meus guardados, tanto materiais como espirituais.

Olho pasta por pasta de textos, de recortes de jornais, cartões, bilhetes, ingressos de teatro, de cinema, para escolher e jogar fora tudo que já não tem mais sentido em minha vida.

É uma tarefa difícil e, quase sempre, termino por guardar novamente 40% do que pensei jogar fora.

Fiquei dois dias sem internet, e para me ocupar, me entreguei a essa tarefa. Havia decidido que desta vez seria radical; achei que estava pronta para jogar no lixo tudo que não me diz mais nada. Reli textos que havia escrito havia dez, quinze anos, e que tinham ficado na última limpeza que fiz há dois.

Tenho a impressão de que quando a gente joga fora o que é exterior na vida da gente, provoca uma limpeza interior. Chego a esta conclusão ao perceber o quanto mexem comigo essas arrumações.

Encontrei escritos que me revelaram a diferença que existe entre a que sou hoje e a que fui. Alguns textos me pareceram tão estranhos à minha forma de pensar atual, que só acreditei serem meus por trazerem minha assinatura.

Crenças que defendi com unhas e dentes e que hoje já não acredito, foram para o lixo. Melhor não ter essas lembranças que me levam a sentir o tempo que desperdicei sem escrever, defendendo essas crenças. Rancor? Não. Nenhum. Apenas descrença. Apenas uma forma de diminuir a tristeza que a gente sente diante das desilusões.

Quando sentia que não teria coragem de jogar alguma revista, algum texto fora, pois “não conseguiria viver sem ele”, pensava: sim, posso. Se eu sobrevivi após a morte de algumas pessoas tão queridas, pessoas que eu achava que jamais sobreviveria sem elas, posso me desfazer dessa revista, posso me desfazer dessa apostila, desse texto...

Foi difícil, confesso. De alguns desses guardados veio o perfume que usava naquela ocasião, sem querer, ouvi Gilberto Gil cantando enquanto eu amassava uma poesia. Chico cantava Iolanda enquanto eu encontrava essa saída. E agora que a encontrei, nunca mais quero guardar coisas supérfluas.

É interessante como essa faxina provocou uma revolução em mim. Remexendo em tantas lembranças, eu, que durante toda a vida sempre tive pressão baixa, de repente senti uma pressão na nuca e centenas de luzes à minha volta. Conhecia esses sintomas – minha pressão arterial subiu e achei que era hora de parar. Tomei um chá de cidreira, meditei durante alguns minutos e melhorei.

As lembranças nos levam a perceber a ação que o tempo exerce sobre nós. Sim, o tempo e os reveses que passamos na vida deixam marcas, rugas e cicatrizes não apenas em nosso exterior, mas, e principalmente, na nossa alma.

Ainda não terminei a tarefa, mas já me sinto leve e tranquila. E assim como limpo este cômodo onde escrevo e guardo meus livros, também minha alma se prepara para o novo. O que há de vir e ainda não sei...

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

4 comentários:

  1. Esse trabalho de edição da própria vida revigora o espírito. É como uma planta já sem viço que recobra a pujança, depois da poda. Pode ser até melhor que plástica e botox. Rejuvenesce que é uma beleza! Boa faxina, Ris. E parabéns!

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  2. Adorei o texto! Estou realmente precisando fazer uma faxina dessas ... ainda mais por ser jornalista, profissional que adora guardar um papelzinho, e para piorar, poetisa, que ama rever os rascunhos antigos ...

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  3. Faxina é limpeza.Renovação. E a vida é isso, né, Risomar ?
    Adorei seu texto. De vez em quando eu também faço faxina nos meus papéis e na minha alma.
    Fico mais leve.
    É bom jogar fora "tralhas " e lembranças que já não nos servem mais e na verdade, só pesam nos ombros.
    Viva a faxina ! Viva a mudança.

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  4. Quando o meu pai morrer( tetraplégico há quase cinco anos, não anda, não fala, não come e nem os olhos abre) farei uma simplificação da minha vida, e sei que nada restará. Pretendo ficar de camiseta, short e sandália de dedo. Uma muda apenas. O restante irá para o " monturo", como dizia a minha finada mãe. Espero conseguir fazer como você Risomar: livrar-me de todo o mal.

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