segunda-feira, 29 de junho de 2009




O olhar traiu até os magos da lógica

* Por Eduardo Murta

O ano é 2053. Carvalho tem a tela de cristal à frente, fazendo a leitura sobre cada um dos que vivem sob sua vigilância. Somam mais de mil. Pelo mapeamento, percebe que Carlos se alonga ao banho há mais de 20 minutos. Que Carmela não se afasta do espelho, retocando a sobrancelha. Que Carmem deixou o serviço de varrição da casa pela metade. Que Carone insere, de novo!!!, uma revista pornográfica ao meio da apostila de normas e procedimentos.

Haviam passado do limite.

E ele estava ali justamente para evitar que a retidão fosse ignorada. Vai enviar o primeiro sinal de advertência. Um toque ao computador para que o bip comece a pulsar-lhes aos ouvidos. Num segundo, a freqüência equalizadora deixará todos fora de combate, em posição de misericórdia. No papel de capataz virtual, Carvalhaes fora eleito em concurso público: dez nas provas sobre o regimento da Federação, impecável na tese para táticas de controle individual e coletivo da massa. Aprovado com louvor. Chegara àquele ponto ostentando quatro medalhas por bravura e lealdade.

Fora iniciado adolescente, ainda, no dia em que entregou os pais às autoridades. O crime: sem ler os procedimentos legais daquela quarta-feira, saíram às ruas com calçados verdes, em lugar dos azuis recomendados. Uma patrulha os cercou na terceira esquina, ao alerta de Carvalhaes. Os oficiais viram ali um soldado do regime, logo incorporado a tarefas de treinamento e, por fim, se alistando como concursado nas fileiras do esquadrão.

Começou fazendo sucesso no setor de programação de perfis psicológicos. Avançou mais tarde para a tecnologia do corpo. Moldaria Carlota com silhueta de modelo, mas bambeza atípica na voz. Olhos que embalsamavam um azul de amanhecer de abril que convidava ao encantamento. Estrábicos, porém. Carregava aversão a cantadas baratas e perfumes de terceira. Ele se pós-graduando em enredos diabólicos, seguindo à risca a filosofia dos governantes, prepararia o terreno. O de promover conflitos para, à frente, mostrar como era necessária a ordem.

Não era casual, portanto, que já tivesse Carlito nas fôrmas daquele mesmo dia. Escaneou-lhe em barriga protuberante aos 28 anos, um certo desleixo com as unhas e queda sem freios para a auto-admiração. Tanto que enxergava em si uma beleza sem reparos. Se traía, na verdade, porque tinha nariz em excesso, boca triste, dentes sem privilégio, queixo retraído. Abusava das colônias xinfrins. E, grave, uma conversa que enjoaria até interlocutores mais pacientes.

Carvalhaes, claro, patrocinaria aquele encontro. Pensou nas circunstâncias, nos pormenores. Praça com vista para a Serra do Curral. Entardecer de setembro. As azaléias já dando o sinal de vida. Precisava agora de um terceiro personagem. Ah... o pipoqueiro. Perfeito. Bastou uma troca rápida de olhares, para que tudo acontecesse. Carlota viu Carlito à fila, empombado, como vendesse charme. Estudou um pouco mais a cena, ruminou, enquadrou o rosto.

Caiu em paixão. No estrabismo, Carlito achando que o contemplava. No fundo, se rendera era ao pipoqueiro. Este sem saber de nada, porque imaginava que a mulher, na verdade, paquerava o freguês. Era equação que computadores jamais resolveriam. Carvalhaes interveio. Intervindo, acionou o sinal equalizado, espetou os tímpanos de Carlota e a pôs em joelhos. Chorava. Agarrou-se às pernas do vendedor, como porto. E ele dizendo que sim, que a aceitava.
Foi que, naquele agosto de 2053, a situação fora de controle, Carvalhaes recebeu as orientações finais: limpar as gavetas, devolver as medalhas, empenhar os diplomas, porque não se admitiria ali capataz virtual que fosse traído pela sutileza do estrabismo. Menos ainda, por adestrador de pipocas que havia entrado em sua história como mero figurante e saíra em desconcertante protagonismo .

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

3 comentários:

  1. Matrix cabocla? Os acontecimentos de sempre, se bem atualizados no futuro pela vitoriosa informática que, já hoje, interfere nos sentimentos e nas emoções. Texto surpreendente, em relação aos seus demais, caro Murta, mas nem por isso menos brilhante. Parabéns.

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  2. Caro, Daniel, você foi no ponto. O grande x é como fazermos pra que no futuro (opa, o futuro tá logo ali atrás) não controlem vidas e sentimentos numa mera mesa de edição. Abraços

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  3. A narrativa é a cara do meu filho, apenas que o futurismo aqui é mais prosaico. Difícil imaginar uma ação como esta dentro de 44 anos. Cena e ações duras, feito pedra, sem nenhuma maleabilidade. O nosso tédio é fichinha perto do que você imaginou Eduardo.E imaginou bem. Traído por um estrabismo. Boa esta.

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