segunda-feira, 22 de junho de 2009




A minha homenagem aos motoristas

* Por Mara Narciso

Há quem ajude a nascer e há quem ajude a morrer. Mas para morrer é preciso um grupo muito maior de pessoas. Exceto nas mortes trágicas, há uma doença que nos leva ao médico, e deste ao hospital. Há os enfermeiros que lidam com o lado ainda mais sujo do que mexem os médicos. Depois que a morte vem, temos os “papa-defuntos” que lavam e tratam os mortos. Tapam-lhes todos os orifícios e seguem rituais.

O caixão é recheado de jornais velhos, em volta de todo o corpo, já vestido e arrumado. Por cima chegam as flores e de acordo com a religião do morto os acessórios podem variar. Então o corpo é exposto em sala com velas ou não, com cruzes ou não, mas de um modo geral há flores, há luto, há choro. Sim, porque mais triste que a morte é um defunto sem choro. E todos os grupos humanos demonstram pesar aos que se vão.

Os parentes e amigos do morto vão chegando, sendo que os mais próximos acompanharam cada etapa do preparo do amortalhado. Lamentos suspirados e contidos ou exclamados e gritados em altos brados. A chegada de um novo parente aumenta o barulho do ambiente. A exposição do corpo pode ser de seis a vinte e quatro horas ou mais, quando embalsamado. Em casos especiais o caixão pode estar lacrado. Quanto mais importante o desencarnado, mais demorado se faz necessário o ritual mortuário. Daí chega o religioso para encomendar o corpo. Difícil fechar o caixão e levar o defunto ao carro com as suas coroas de flores. Essa é a hora do grande lamento final.

Ninguém dá muita importância a quem dirige o rabecão. Essa pessoa não tem rosto e nem nome. É um vulto que cumpre simplesmente o seu papel. No cemitério há um breve cortejo até o túmulo. Cordas descem o féretro e depois o coveiro fecha aquela que deverá ser a última morada. Algumas vezes se toca música, cantam-se hinos e há uma renovação de choros, suspiros profundos e lágrimas.

Alguém há de se lembrar da pessoa cujo ofício é dirigir o carro? Pois estive conversando com uma dessas pessoas, um homem de trinta e sete anos. Na carteira de trabalho o registro é como motorista, mas tem por função buscar o morto onde ele estiver. Caso seja um assassinado, destroçado em acidente (necessita reparo para estar apresentável a família?), ele lava e costura onde for preciso. Após esses cuidados veste e arruma tudo, algumas vezes à frente de parentes. Trabalha e ganha o seu sustento convivendo oito horas por dia com a morte. Cheiro de corpos sem vida, odores finais, secreções e excreções. Ambiente carregado de dor, de flor, de desespero. Outras vezes há um sentimento de alívio quando a morte seguiu-se a uma longa e sofrida doença.

Segundo ele, os ricos fazem bem menos barulho com a morte que os pobres. As mulheres choram bem mais do que os homens; e quando a morte é violenta, acontecem alguns excessos e até desmaios. A pior hora é quando vai fechar o caixão para levar ao cemitério. É comum que algum parente agarre-se com ele, para impedi-lo de cobrir o ataúde. Gritam, imploram, descabelam-se, principalmente mães perdendo os seus filhos. É o momento mais triste dentro da tristeza que é a morte. Comoção generalizada compartilhada pelo motorista que a tudo vê e a tudo sente todos os dias laboriosamente.

Disse-me que não tem medo de morrer e me contou que uma vez, um dos colegas, que são nove nessa funerária, comentou sobre como seria estar dentro do caixão e não do lado de fora. Algum tempo depois ele se foi embalado por um câncer no fígado que lhe ceifou a alegria e a vida em poucos dias. Então, de vez em quando, estando em serviço, comentam uns para os outros aquelas palavras do amigo, tão rapidamente morto, assim numa espécie de homenagem póstuma. Afligem-se nessa hora, porque mesmo lidando em estado contínuo com ela, a morte dos outros, é imperativo que pensem também na própria morte.

No mundo dos vivos os profissionais, apenas motoristas em suas carteiras de trabalho, são completamente esquecidos por todos. Quero prestar aqui a minha justa homenagem aos guerreiros de uma guerra já há muito perdida.


* Médica, acadêmica de jornalismo, autora do livro “ Segurando a Hiperatividade”.

6 comentários:

  1. Ah, os barqueiros que nos levam à última morada! A mitologia está cheia deles. São criaturas soturnas, caladas, o rosto sem expressão. Talvez saibam de tudo, talvez saibam mais que os demais, conhecem itinerário e destino. Conduzem a falta de importância até a nulidade, enquanto choramos uma dor que não cabe neste mundo. Bela homenagem, Mara. Parabéns!

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  2. Na hora da dor, temos a impressão de que o carro vai sozinho. Não nos damos conta de que há alguém ao volante. São pessoas que viram sombras de tão discretos que são. Obrigada pelo comentário Daniel.

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  3. É triste a lida inglória dessa gente. Que rara e sensível homenagem você presta a estes anônimos heróis! Parabéns, amiga Mara.

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  4. Marcelo, no momento do enterro jamais lembraremos de olhar quem é o motorista, na verdade agente funerário. São mesmo uns esquecidos. Obrigada pelo comentário.

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  5. Mara, você nos revelou com sensibilidade aqueles que não vemos nesse momento triste. Prefirimos a anonimidade o que não deixa de ser uma injustiça. Parabéns, amiga! Beijos.

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  6. Sim Evelyne. No final queremos mesmo é esquecer essas horas dolorosas. Trazer esses profissionais das sombras para a luz é uma questão de justiça sim amiga. Obrigada pela leitura.

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