segunda-feira, 22 de junho de 2009




Gol redentor

* Por Daniel Santos

Sei, hoje, quem ele é, ou penso saber, e me retraio. Nem tanto por medo, pois, homem feito, tenho bons punhos. Mas a impressão, forte impressão, é que, desde sempre, tem planos para mim. Mas o quê?

Quando bem pequeno, ele convenceu meu pai a liberar-me aos treinos de futebol. Trabalhava como técnico infantil e me queria em campo. “O garoto tem futuro”, avaliava. E a família acabou cedendo.

O que sou devo à sua publicidade. Mas, ao me perceber agradecido, tomou-me o relógio e disse que, a partir de então, controlaria meu tempo! Criança demais para avaliar a gravidade daquela subtração, assenti.

Daí em diante, tudo melhorou. Ganhei fortunas, alcancei invejável notoriedade. Mas ele sempre me aparece na penumbra do túnel de acesso ao vestiário, na calçada oposta, num vagão de metrô, na arquibancada ...

O tal me olha e consulta o relógio. Com os anos, ele se enche de expectativas e eu, de presságios. É como se a partida estivesse já perdida, mas imploro por um minuto a mais de jogo, a ver se faço o gol redentor.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

6 comentários:

  1. De um lado a glória, do outro a cobrança. Mefisto do gramado? Que a liberdade venha com o gol redentor! Muito bom, Daniel! Abraços e parabéns!

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  2. O treinador parece um anjo torto, uma visão, quase uma consciência. Ficou dono do relógio e do tempo do jogador. Significa o bem e o mal, a glória e a dor. Não saberia dar um exemplo no mundo real de gente assim. A superconcisão tirou-me a certeza de quem foi que o protetor se tornou.

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  3. É nesse limbo de significados e alegorias, de um "assim é se lhe parece" que reside o encanto da sua literatura, Daniel. Lido este texto por mil leitores, cada um deles tiraria uma interpretação diversa. É como já disse outras vezes - quando crescer quero escrever desse jeito. Maravilha.

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  4. Marcelo, Mara, Eve e Cel, muito obrigado pela sempre agradável visita à minha crônica com olhares tão generosos que merecem toda a minha gratidão.

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  5. Quem será esse que lhe tomou o relogio e ficou dono do seu tempo, Daniel? O que se esconde nas entrelinhas deste texto tão incrível, tão bem escrito? Deu-me uma sensação de expectativa diante da vida, do que a gente deixou pra trás, do que perdeu, do que ficou...Belo texto!
    Beijos

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