sábado, 30 de maio de 2009


Teoria literária

* Por Ivan Melz


- Queria ter escrito um livro...
- Mas você escreveu vários!
- Não! Queria ter escrito um livro definitivo, um livro em que não houvesse uma só palavra fora do lugar, uma obra-prima.
- Mas você escreveu livros bons! Não deve se arrepender do que não fez. Orgulhe-se do que conseguiu construir ao longo da vida: uma sólida carreira literária.
- Bons livros?! Aquilo eram pastiches, coisas de pouco significado literário, mas com um certo valor comercial...
- Não fale assim, pois está sendo injusto consigo mesmo; além do mais, isso não tem mais importância.
- Como não? É sobre minha vida que estou falando! Tem importância, sim!
- Tá bom, tá bom! Sempre o mesmo ranzinza, até o fim! Chegou a pensar como seria essa história? Conseguiu começá-la.
- Sim, sim, várias vezes, mas nunca a concluí. Cheguei a escrever mais de 200 páginas, mas acabei emperrando num ponto da trama em que não pude sair.
- E sobre o que era?
- Sobre um homem, na verdade, um rapaz de 20 e poucos anos, inteligente, mas totalmente inábil, que não consegue progredir na vida por estar preso a uma série de problemas e circunstâncias que o impedem de realizar o seu sonho.
- Qual é o sonho dele?
- Ser escritor!
- Ah... ser escritor! Acho que conheci um rapaz assim uma vez; mas, que eu saiba, ele realizou seu sonho e se tornou um escritor!
- Talvez você esteja certa, em parte, mas este jovem, apesar de ter alcançado o que desejara, também pode ter se frustrado por ter ficado bem aquém do que imaginara inicialmente para si!
- É, pode ser.
- O que mais vi na vida foram homens frustrados, incompletos, por destruírem os seus sonhos ou serem destruídos por eles, por isso parei de sonhar antes dos 30.
- A quem está tentando enganar? Nunca deixou de sonhar e não foi nenhum desses homens...
- Fui, sim. Não existe uma terceira espécie de homens. Minto, existe sim: os que são pequenos demais em comparação aos sonhos que tiveram e nunca os alcançaram!
- Sei... mas e o contrário não é possível?
- Como assim o contrário?
- Homens grandiosos que, por opção ou falta de oportunidade, tiveram vidas medíocres, e se resignaram com mundos pequenos desprovidos de sonhos!
- Ainda não entendi.
- Não acha possível que homens de grande capacidade se contentaram com uma vida comum, sem sobressaltos, com pouco dinheiro e vivendo, quase sempre, mal por saberem que realizar seus projetos ou alcançar a glória em nada lhes ia diminuir o tormento de viver.
- Hum... me dê um exemplo?
- Sei lá... Fernando Pessoa, por exemplo! Lima Barreto, Kafka! E outros que não me lembro agora.
- Sim, em termos de literatura, talvez. Mas isso nunca me passou pela cabeça; você pode ter razão! Apesar deles serem reconhecidos postumamente tiveram vidas bem difíceis; aliás, pra eles, sobreviver ao que passaram já foi um grande feito! Não por acaso morreram relativamente jovens.
- Sem dúvida, mas a posteridade lhes fez justiça...
- Nunca havia pensado nisso antes. Obrigado por me trazer um pouco de luz neste momento, pena que não tenho tempo para reelaborar minha teoria sobre os homens e incluir nela mais uma espécie. Devíamos ter tido esta conversa antes, há uns 30 anos pelo menos...
- Sempre o mesmo engraçadinho! Mas fale mais sobre o livro que não chegou a terminar.
- Bem, a história é narrada em primeira pessoa, pelo jovem desajustado que lhe falei, e começa após a morte de seu melhor amigo...
- Por que você tem sempre que matar alguém em suas histórias?! Nunca entendi essa sua fixação mórbida!
- Ora, e por que não mataria? Os personagens existem para que façamos com eles o que não podemos fazer com as pessoas comuns...
- Que horror! Só você mesmo pra dizer uma coisa dessas nesta situação...
- Tá bom, vou tentar melhorar um pouco. Nunca acreditei em histórias que não terminassem tragicamente com a morte de um personagem ou que, ao longo dela, não tivessem pelo menos uma morte! Desde quando comecei a ler, as histórias sem morte me pareciam coisas infantis como os contos de fadas. Considero aquela coisa de “...e viveram felizes para sempre” abominável, o pior dos embustes, afinal, a vida não é assim!
- Então, em todas suas histórias, matou seus personagens para se sentir uma espécie de deus que lhes concedia a vida, mas também se dava ao direito de tirá-la quando bem entendesse!
- Credo! Agora a horrorosa foi você...
- Por que horrorosa?!
- Me sentir um deus para poder tirar a vida de meus personagens que idéia! Parece coisa de jornalista que leu a orelha de vários livros de um autor para depois entrevistá-lo...
- Tá bom, não precisa me ofender.
- Não queria lhe ofender. Só queria que percebesse o absurdo que disse. Se os escritores, digo os grandes, claro, escrevessem apenas com o objetivo de se sentirem deuses, para que pudessem matar os seus personagens quando lhes conviesse, deveriam estar todos presos num manicômio penitenciário ou figurarem numa galeria com os piores facínoras que se tem notícia na História!
- Que exagero...
- É sério! Digo isso porque nunca conheci um escritor ou literato, uma pessoa que vivesse intensamente a literatura, que não descobrisse num único dia de sua existência pelo menos um arquétipo literário.
- Meu Deus! E o que isso tem a ver com o que a gente está falando? Crimes, assassinatos...
- Ora, minha cara, faz todo sentido! Se imaginarmos, como você disse, que todo escritor escreve apenas para se sentir um deus – para ter direito sobre a vida e a morte de personagens de ficção – e que, por infelicidade, no mundo real, encontrasse alguém com os contornos psicológicos e físicos de um dos personagens mais pérfidos criados pela literatura, seria tentado a praticar justiça com as próprias mãos! Eu mesmo, se isto fosse possível, já poderia ter cometido pelo menos dois assassinatos: um contra um tipo intrigante como Iago, de Shakespeare, e outro, ainda mais canalha e manipulador, que lembrava muito Ivã Karamazov, de Dostoievski!
- Mas você mesmo me disse uma vez que personagens não têm psique! Como seriam capazes de saltar das páginas de um livro para a vida real?
- Pra você ver o quanto é absurda esta idéia de que os escritores escrevem para se sentirem deuses!
- Desisto, é impossível discutir com você! Esquece, vamos mudar de assunto! Como se sente?
- Estou ficando com sono, cansado!
- O remédio deve estar começando a fazer efeito!
- Sim, deve... Obrigado por ter feito isso por mim!
- Não precisa agradecer!
- Posso lhe pedir um favor?
- Claro!
- Descreva pra mim este quarto onde estamos?
- Bem, não sou muito boa nisso!
- Tente pelo menos...
- Bem, ele não é muito grande. É retangular, deve ter três metros por cinco, mas parece enorme. Nele só há a cama e o criado-mudo e, sobre este, há uma garrafa com água e três cartelas de remédios espalhadas.
- E a janela fica onde?
- Fica bem na sua frente, aos pés da cama!
- Não diga isso!
- Não dizer o quê?
- Pés da cama! Faz tão pouco tempo que perdi meus pés; sinto saudades deles assim como das minhas pernas...
- Desculpe...
- Não foi nada, continue a descrição, por favor!
- Falta só falar da cortina!
- Como ela é?
- Branca e de plástico e, de tempos em tempos, flutua quando a brisa entra pela janela!
- Que cena maravilhosa! E o dia como está?
- Faz um dia bonito e morno de primavera, mas vejo umas nuvens escuras se formando no horizonte. Deve chover no final da tarde como tem acontecido por estes dias!
- Me parece um dia perfeito para morrer! Posso lhe pedir outro favor?
- Sim...
- Seu marido está aí?
- Está me esperando lá fora!
- Ótimo!
- Por quê?
- Queria que você me beijasse!
- Não precisava pedir, já ia fazer isso, bobo.
- Gostei, mas não era um beijo na testa que eu queria.
- Ah, não?! Então onde era?
- Estou lembrando de quando nos conhecemos, se pudesse, queria que fosse na boca.
- ...
- Agora posso morrer feliz!
- Não fale assim! Você não é um personagem de romance de terceira categoria pra dizer essas besteiras!
- Estou cada vez mais cansado, quase não sinto o que sobrou do meu corpo...
- É o remédio que já está no sistema nervoso central, daqui a pouco estará terminado...
- Sabe de uma coisa?
- O quê?!
- Sei porque não concluí minha história. Faltava um final perfeito para o jovem que queria ser escritor.
- Deixe pra lá! Pensar nisto só vai lhe trazer ansiedade.
- É que acabo de imaginar o desfecho da história: termina com ele velho, cego, sem as pernas, corroído pela diabete, numa bela tarde de primavera, num leito de hospital, conversando com uma antiga namorada que o ajuda a morrer e não derrama uma lágrima como ele havia lhe pedido!
- Impossível!
- Impossível, o quê?!
- Este final! Você disse que escreveu a história em primeira pessoa; se ela terminar assim ficará inverossímil!
- Foi por isso que não consegui terminá-la! Deveria tê-la escrito em terceira pessoa!
- Posso fazer mais alguma coisa por você?
-Me dê mais uma dose do remédio; não quero estar vivo quando sair por aquela porta!

*Jornalista e escritor

2 comentários:

  1. O diálogo foi arrebatador. Tragou-me para uma realidade ficional/hospitalar. Reconheço pessoas em algumas passagens dessa boa conversa.

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