terça-feira, 19 de maio de 2009




O Sacristão e a Moça

* Por Clara dos Anjos

A moça era mistério. Ainda chamada de moça, porque no povoado, o adjetivo era usado para classificar aquelas de ar casto, pueril, semblante pacífico. Ela respondia, embora contrariada. Era virgem sim, mas e os sonhos que povoavam a sua mente? E as tantas vezes que acordara no meio da noite, suando, como se alguém estivesse ali a roçar suas pernas? “Ah, se eles soubessem, se ao menos desconfiassem”, pensou a moça. Poderia até ser expulsa da vila. A vila que ela tanto amava, cujas casas pareciam imitar a arquitetura de um convento. Foram erguidas num tempo em que as pessoas se dedicavam às belas construções, aos cuidados com as plantas e animais e dispunham de tempo e emoção para os detalhes.

Naquela vila, Helena era feliz. Recebera o nome em homenagem ao personagem de Machado de Assis. De comum com a personagem parecia ter a sensibilidade. Não encontrara algo mais, pois esta escolheu ser fiel ao poder, às necessidades materiais, deixando de lado o amor. A Helena que habitava a vila, era visceral, apaixonada por tudo que lhe despertasse atenção. Não conhecera até ali, o amor. Não conhecia de perto um homem. Nem poderia imaginar a sensação de estar ao lado de um, mas amando, jamais deixaria que interesses mundanos ocupassem os seus dias. A bem da verdade, simpatizara com o sacristão, e temente a Deus, não ousaria se aproximar. Já nem freqüentava mais a missa, com receio de encontrá-lo.

No dia corrente, Helena sonhara com ele e acordara tremendo, suando, quase como num pesadelo. O que estaria fazendo aquele homem ao seu lado, no sonho? Como poderia? Com tanta inquietação, resolveu procurar a dona Corina, benzedeira famosa que chegara à Vila dos Ascetas há muitos anos. Tomaria os remédios elaborados com raízes da região e ficaria curada. Contaria à dona Corina sobre o estranho sonho, mas sem revelar o nome do personagem. A possibilidade remota de que alguém pudesse descobrir sobre o sacristão, assustava a moça. Não conseguia mais olhar dentro dos olhos daquele homem.

Num dia de lua cheia, o padre doente, ele celebrara a missa. A Vila ficou sem energia, em decorrência das fortes chuvas, mas a lua, imensa, iluminara toda a igreja com seu clarão. Pela primeira vez notara aqueles olhos. Brilhantes e de uma tristeza sem igual. “Que dor guardariam olhos tão tristes?”, pensou Helena. Ali mesmo sentiu o corpo suar, tremer. O clima daqueles dias estava por provocar incêndio, tamanha quentura. Creditou as sensações à temperatura. Bem mais adiante descobriu que até mesmo nos dias invernais seu corpo ficava quente, fazendo-a invariavelmente despertar no meio da noite.

Chegou à casa de dona Corina, um pouco afastada da Vila. Contou sua história e suas sensações à bondosa senhora. Chorou, mas logo se levantou, pegou um bule com o chá preparado pela benzedeira, se serviu e agradeceu, saindo lentamente pela porta dos fundos. Era por ali que gostava de passar. No quintal, via os cães, as flores tão bem cuidadas, o papagaio que a chamava pelo nome e cumprimentava eufórico. Saindo, despediu-se do Aristides, o papagaio, acenou para o cão Nestor e tomou o rumo de casa. Para chegar à sua casa, Helena haveria de passar pela praça central.

E lá ia a moça, na tarde quente, sol a pino, perdida em seus pensamentos, quase não escutando o barulho infernal que tomava conta da praça naquele dia. Era quase um show, com gente transitando pra lá e pra cá, carregando bandeiras com fotos dos santos de sua devoção. Uma festa que há muito perdera o encanto na Vila. Transformara-se em negócio lucrativo e perdera o cunho a que, a priori, se destinava. Só os mais jovens se entusiasmavam, e Helena, apesar de jovem, optara por ficar um pouco distante da luxúria, do poder e da cobiça, que a festa ora representava.

De repente, a moça tropeça em alguma coisa. Assustada, volta ao mundo real. Tropeçara num banco de cimento, no meio da praça. Simão, acomodado no banco, conversava com um cão de olhos quase tão brilhantes quanto os seus. Ele era assim. Conversava com os peixes, os cães, e se duvidassem, até com os elefantes. Tinha olhos voltados para as flores, algumas em especial, mereciam mais atenção. Era capaz de identificar as suas favoritas pelo cheiro, como era também capaz de identificar à distância, uma alma. Ela ouvira dizer que o sacristão era homem excêntrico, cheio de manias, gênio difícil, mas quem o conhecia bem, não deixava de ressaltar o seu nobre coração, a sua maneira simples de levar a vida e o dom para a compreensão.

Em poucos minutos tudo aquilo perpassou a mente de Helena. Ruborizada, a moça ensaiou um pedido de desculpas, sem saber ao certo se deveria pedir licença, desculpas ou nada dizer. Percebendo seu constrangimento e a fim de quebrar o silêncio, Simão a convidou para um sorvete. Foi o suficiente para ruborizá-la ainda mais. Para esconder a vermelhidão da face, ela abaixou a cabeça e balbuciou que sim, afinal, não conseguia esconder do próprio coração o quanto a companhia daquele homem lhe engrandecia. Era praxe ir à sorveteria do seu Geraldo, sozinha, se esbaldar com o sorvete favorito. Nunca entrara no recinto acompanhada por um homem. Nem passava pela sua cabeça que viria a conhecer várias coisas, passar por situações inusitadas, na presença de uma figura masculina. Sempre brincalhão, fez rir as funcionárias do seu Geraldo.

Pela rua, uma das mais tradicionais da Vila, caminhava a moça, na companhia do sacristão. Ela, atenta às sapientes observações de Simão. Ele, com olhos tristes, quase escondidos por óculos de intelectual, usando uma roupa leve, de verde suave, sorriso doce nos lábios. Caminharam sem destino e naturalmente chegaram a casa onde Simão passava os seus dias.

Portão aberto, Helena num silêncio respeitoso, pisa o chão. A casa mais parecia um bosque. Ali estava refletida a alma generosa de Simão. No chão, em meio ao gramado, despontavam pedras colocadas de maneira regular, que pareciam formar a letra “M” ou “W”, dependendo da posição em que fosse observada. Provavelmente, fincadas uma a uma, com cautela, precisão, trabalho operário. Muitos bancos espalhados pelo jardim, e a casa dividida em duas. Duas casas, muitas lâmpadas, que acendiam e apagavam freqüentes, sendo que o primeiro movimento era responsável por alimentar o brilho dos olhos daquele menino. Ou melhor, daquele senhor.

Simão era um senhor de alta idade, aparentando sempre um pouco mais, porém carregando no sorriso, no corpo, nos gestos, palavras e sobretudo no olhar, a meninice. Era encantador, terno e gentil. Ela prosseguiu, seguindo as pedras e descobrindo caminhos. Logo atrás, aparecia o sacristão que a tomou pela mão em direção aos fundos da casa, a segunda casa, que fora um dia, a primeira. Helena, eufórica, avista uma rede. Era tudo que ela mais amava. Uma rede e muitos sonhos. Sonho de encontrar o seu príncipe e com ele, trocar juras e carinhos, acomodados numa rede. Nos seus sonhos de menina, sempre havia lugar para uma rede... E um príncipe, apenas um. A moça sentou-se sobre o tecido de cor róseo-alaranjado. De frente para Helena, sentou-se o sacristão. E foi ali, numa rede de tecido de cor incomum, sob a luz que se movia, numa noite clara e quente, que a moça Helena, avistou o amor. O amor pueril, de barbas brancas, de olhar límpido, de gesto manso. O coração amoroso enxerga até de olhos fechados.
Rezou. Chorou!

*Clara dos Anjos é cronista/contista/poeta, nasceu em Montes Claros, interior do estado de Minas Gerais e reside na capital Belo Horizonte. É colaboradora em suplementos literários e comunicadora. Recebeu o nome de um personagem do escritor Lima Barreto, de quem seu pai era leitor e admirador. Prepara a publicação de seu primeiro livro "Ecos", compilação de crônicas, contos e poemas.

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