segunda-feira, 25 de maio de 2009




“Cara-de-meu-Deus-o-que-é-isso?”

* Por Mara Narciso

Quando uma pessoa olhava espantada para alguma coisa ou fato diferentes, mas não totalmente novos, a minha mãe usava a expressão “fez uma cara-de-meu-Deus-o-que-é-isso?” para explicar como a pessoa estava. Um passeio domingueiro pela Avenida Paulista pode trazer coisas novas até para os olhos mais treinados. E muitos questionamentos onde se pode usar a expressão criada pela minha mãe.

Timidamente entrei na feira de antiguidades do MASP, às 11 horas da manhã. Foi como adentrar no passado e encontrar os meus ancestrais, porém com roupas atualizadas. Notei que alguns dos vendedores estavam tão brilhantes e chamativos que ofuscavam os objetos vendidos. Lembrei que os jovens acham-se novidadeiros e criativos quando nada mais fazem do que copiar muito do que já foi feito. Os cabelos e roupas dos senhores vendedores eram um show complementar.

Nas bancas que visitei apenas um vendedor era jovem. Os demais não o eram e uma senhora parecia ter dormido num sarcófago. Valia fotografá-la, pois formava uma composição perfeita com os objetos que vendia. Não consegui identificar boa parte dos aparelhos antigos que vi. Olhava com cuidado temendo um esbarrão nas preciosidades, ou uma má surpresa: crise de asma, em vista do mofo e ácaros. A feira é boa, mas apenas para visitação. Quem não trabalha com reconstituição de época poderá até adquirir um ou outro objeto, sendo colecionador, mas para enfeitar uma casa comum, acho improvável efetuar uma compra.

Era o “Dia do Índio”, e mais à frente havia na Casa das Rosas, também chamada Espaço Haroldo de Campos, uma manifestação indígena acanhada com venda de artesanato, de livros e CDs. Estavam expostos quadros de índios, e também circulavam por lá algumas famílias indígenas. Tudo se passava na varanda, e lá dentro exibia-se um filme, aparentemente de outro assunto. Numa das salas havia uma monitora com crianças sentadas no chão entrando em contato, talvez pela primeira vez, com brincadeiras não eletrônicas.

A moça jogava “pedrinhas” com elas, que, tolerantemente prestavam atenção. Nas paredes havia as várias versões do Sítio do Pica-Pau Amarelo para televisão e cinema, além da biografia do advogado José Renato, que depois, foi por ele mesmo rebatizado de José Bento Monteiro Lobato devido a uma bengala encontrada com as iniciais JB. Como é sabido, muitos iniciaram o amor à literatura e aos livros pelas letras dele, que num dado instante da autobiografia disse que tinha escrito um livro no qual suprimiu todas as partes que os leitores pulavam, e assim acreditava ter achado a fórmula ideal de escrever.

No Espaço Cultural Itaú, também na Avenida Paulista, é preciso fazer uma ficha com documento com retrato para ver a famosa coleção de numismática no nono andar. Tinha pressa, já que o jogo do São Paulo e Corinthians iria começar em uma hora. Então a visita ficou pela metade. Na sala das instalações, olhei as obras de arte entre incrédula, espantada e benevolente. Havia uma obra feita de faixas de plástico rajadas de preto e amarelo, daquelas para fazer isolamento de área, pois marcam locais de acidente, locais perigosos, onde acharam um corpo, ou onde foi vedado pela justiça. Formavam um quadrado, com múltiplas cortinas, e jogadas ao lado, um monte das mesmas faixas empilhadas, como se não tivesse dado tempo de colocar todas na estrutura principal. Adiante uma tela apresentava uma filmagem acelerada da construção de uma casa de madeira em miniatura com todos os seus móveis. Depois havia um painel ocupando toda uma parede branca com frases em letras graúdas e pretas escritas em inglês.

Noutro andar havia três câmeras, cada uma delas voltada para uma parede diferente projetando um muro sendo levantado com tijolos furados soltos. Quando completava o muro caiam aos poucos, sendo tudo acompanhado pelo barulho característico. Havia outros vídeos inesperados, de um prédio coberto com o tradicional plástico azul para reforma, balançando ao vento e duas canecas de alumínio. A explicação: o objetivo era fazer surgir no observador uma sensação cinestésica de mudança da paisagem urbana para rural. Achei melhor entender que o azul da proteção plástica era uma sugestão de água e os copos de sede.

Um vídeo cuja intenção era ser chocante foi na verdade cansativo: um homem bem vestido se arrasta por quilômetros na Avenida Paulista e as pessoas não olham. Não era ensaiado, o que prova ser possível morrer sem ser notado na mais importante avenida de São Paulo.

Havia uma parede construída com peças de isopor de embalagens de eletrônicos, vasos de plantas deitados com os vegetais crescendo na direção do sol e contra a gravidade, pedras espalhadas pelo recinto sem uma lógica, vídeo de homem que come pedras grandes e as expele pela boca pequenas ou ao contrário. Chamou a minha atenção uma pedra grande com uma torneira de onde saiam pedrinhas em vez de água. A cada pedrinha que saia a pedrona diminuía de tamanho até sumir, enquanto as que tinham saído iam se unindo e crescendo, formando uma nova pedra grande. Então vinha uma mão e colocava a torneira novamente, para o processo se repetir.

Assim, mesmo tendo estudado rudimentos da História da Arte, vejo que tentar entender arte é inútil, e mais difícil ainda é tentar contar como ela é. Posso assegurar que nessa incursão aos espaços culturais tive sensações boas e ruins. Assim, algumas vezes evoquei a expressão da minha mãe. Mas algumas obras soaram-me indiferentes. Não é culpa delas, eu sei. Ainda não estou preparada para senti-las.

* Médica endocrinologista há 29 anos, acadêmica do 6° Período de Jornalismo e autora do livro “Segurando a hiperatividade”


6 comentários:

  1. Impossível abranger Sampa, que a cidade proclama a variedade e excede a tudo e a todos. Resultado: pasmo. E não só o seu, cara Mara, pq ante tantas ofertas os visitantes emitem uma interjeição em comum: "oh!" com a tal cara-de-meu-deus-o-que-é-isso que vc aqui descreveu tão bem. Parabéns.

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  2. Que instigante e conceitual passeio pela Paulista heim, Mara? Ótimo e detalhista o seu relato. Estive lá sem precisar ir pra São Paulo! Um beijo pra você.

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  3. O texto faz a gente se lembrar do belo letrista que foi (ou é) Belchior: "na parede da memória, essa lembrança é o quadro que dói mais".

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  4. Daniel, Marcelo e Murta, agradeço a atenção da leitura e dos comentários animadores. Muito obrigada!

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  5. Tem "obra de arte" por aí que insulta minha inteligência e minha sensibilidade de artista, Mara. Parabéns pelo texto e 26 beijos.

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  6. Fábio, concordo com você. Não entendemos e os burros somos nós. Obrigada pelos beijos.

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