sábado, 23 de maio de 2009


Bolinhas de gude e peões

* Por Felipe Diemer de Lemos


Roda o peão em plena rua de terra sem que ninguém se preocupe com isso. Somente o menino que aguarda ansioso o fim do rodear do pequeno artefato de madeira envernizada. Só ele dá risada sozinho ao ver que aquele brinquedinho não faz barulho, mas diverte. Tem bolas de gude em um dos bolsos do velho casaco escolar e enquanto limpa o nariz que escorre ouve os barulhos da sua cidade.

Ouve o som da máquina que perfura as calçadas da cidade e olha de longe abismado com tanto ruído quase ensurdecedor. Ronca a barriga oca desde o desjejum e corre para dentro de casa em busca de um pão qualquer com algo em cima. Volta saboreando o lanche feito pela mãe. É quase meio-dia. Vinte e cinco anos mais velho, o operário da máquina perfuradora também sente fome, mas não pode parar. Não dá para parar. E mesmo que parar, vai faltar dinheiro para comprar almoço porque precisa guardar para o remédio da mulher que está grávida em casa. Limpa o suor e segue a sina diária sem pestanejar, sem murmurar, apenas olhando esporadicamente com testa franzida e olhos semi-abertos o sol escaldante.

Brinca o menino com seus sonhos pueris, ilusões de quem nunca pensa em crescer e a certeza de que tudo o favorece ao redor. Joga bolinha de gude com dois amigos e brigam naquela arena de jogos empolgantes sem olhar para o relógio, sem pressa para terminar, sem prazos para cumprir e sem chefes para fazer exigências. O único medo é de chegar a temida hora de fazer a tarefa ou de tomar banho. Na outra rua, a motoqueira corre ofegante com o capacete em uma das mãos e a entrega na outra olhando fixamente para a numeração dos prédios. Precisa deixar uma encomenda urgente, mas o nervosismo a acaba cegando. Finalmente encontra o prédio, toca o interfone, ouve uma voz adormecida e irritada. Mesmo assim, precisa entrar e fazer seu trabalho. Escuta meia dúzia de desaforos de uma queixosa cansada, pega sua moto e ziguezagueia pelo trânsito enlouquecido das 4 da tarde na cidade grande. Na rua de terra, calmamente a bolinha pára dentro do gude e alguém grita que já era aquela esfera. Um menino toma e o outro reclama. Começam a discutir, mas finalmente um terceiro põe fim à balbúrdia e recomeçam a partida. Estão com os joelhos sujos, os narizes escorrendo e os cabelos sebosos de tanto coçar com mãos cheias de areia.

Nada comparado ao advogado que passa em frente ao campo dos garotos todo alinhado, mala escura, cabelo bem penteado, sapatos impecavelmente lustrados, olhar altivo e passos rápidos e largos. Passa velozmente e sem querer levanta areia e suja ainda mais os compenetrados jogadores de bola de gude. Eles olham com raiva, mas estão mais preocupados com o bater das minúsculas bolinhas e com as regras a serem observadas na partida. O advogado nem sabe onde passou; está concentrado em resolver mentalmente um argumento para apresentar nos minutos seguintes perante uma sessão de tribunal. Sobe as escadas do prédio grande com vidro espelhado da rua transversal a dos meninos e desaparece. Para os garotos, foi apenas mais um adulto chato que só atrapalha as brincadeiras.

Termina o jogo de bolinha de gude ao chamado da mãe de um dos atuantes jogadores. São seis da tarde e precisam se recolher. Os outros dois se olham e ensaiam uma relutância. Pressionam o terceiro a permanecer e desobedecer à ordem da mãe. O protesto só dura até a mãe, quase rouca, aproximar-se e mostrar uma vara e sérias restrições caso não seja atendida. Dissipa-se o local de intensos jogos da tarde. Seis e meia. Para o vigilante do prédio em frente aos meninos só começou mais uma noite de trabalho. Chega de bicicleta com sua marmita, toma o posto, liga a televisão, coloca o casaco na cadeira e senta para vigiar o condomínio. Às 11 da noite, o vigilante precisa se levantar do seu posto e chamar a polícia porque tem bandido no residencial tentando arrombar um apartamento. Os três meninos, nessa hora, dormem bem acomodados embaixo de seus cobertores limpinhos cheirando a amaciante. Só sonham sonhos pueris, quem sabe imaginam as brincadeiras do amanhã breve. Logo vão crescer e ver uma vida diferente das bolinhas de gude e dos peões. Mas até lá se sentem, mais do que nunca, crianças.


*Jornalista, participou de três antologias de escritores gaúchos, mora em Florianópolis e atualmente trabalha como assessor de imprensa. Prepara livro de crônicas e é colaborador ocasional de jornais e revistas.

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