sexta-feira, 17 de abril de 2009




Você se lembra?

* Por Urariano Mota


Estou sentado à sua frente, numa sala, trinta anos depois. Estou desempregado, procuro aulas. Ele é sócio e diretor de uma grande escola para a classe média.

Sinto, não sei se por desconfiança atávica, que seus colegas, que seus alunos passam pela janela e nos olham, e que não nos compreendem. Bobagem, eu me digo, estamos conversando, eu sou seu amigo, e nada trago escrito na testa que exiba que não sejamos semelhantes.

Pelo menos hoje eu não estou de terno.

Era um terno de primeira comunhão, com gravata borboleta, tão impecável na época quanto encardido, ridículo, repugnante, hoje na minha memória. Eu recordo que em seu aniversário, aniversário de menino rico do ginásio, eu fui a sua casa com esse terno. O garfo que eu segurava, o garfo em que eu me segurava, naquele ambiente estranho, escorregou-me dos dedos e se foi, e me levou com ele até o chão.

Pelo menos hoje eu não estou de terno.

Agora estamos frente a frente em trajes civis, sem farda e sem gravata, trinta anos depois. Ele está e é muito mais alto do que eu o imaginava. Estranho como nos tempos de ginásio eu não o via tão alto assim. Ele me olha e não me reconhece. Não sei qual de nós dois se acha em situação mais difícil.

Eu o encaro e tento acompanhar em seu rosto as voltas do tempo. Mas é extremamente difícil. Primeiro, porque muito engordou. Segundo porque não há mais aqueles traços de ingenuidade, da pureza que era ou foi um marco em nossas relações. Ficou só a inteligência, atrofiada em sua agilidade, mas inteligência, que, agora, é apenas a habilidade de contornar problemas. Quantos anos, não aritméticos, efetivamente, terá? Cinquenta? Novamente é levantado um problema. Você o resolveria, Antonio? Para mim, em minha situação de necessidade, ele atingiu a uniformidade dos donos de empresa, nisto incluindo a família que constroem, suas opiniões e amizades. Como têm dinheiro, cercados de gente – a sociedade – que não o tem, viram-se esquivos, quando não ariscos, a qualquer possibilidade de contato, para eles contágio. Humanidade é despesa, fecham-se.

Imagino que ele ficou sem passado. Se o passado for a raiz de uma árvore, que em suas folhas dê o florescimento da raiz, ele não tem chão, nem folhas, nem galhos, só um céu de anil, de preferência pintado numa sala, aonde não cheguem o rumor e o calor de gente como eu. O curioso em Antonio é que nele essa ausência, esse corte do passado, confunde-se com a doença, suponho. Ele, por indícios virei a concluir, tem um câncer no cérebro.

Eu fiz uma operação, aqui, na cabeça.

Na cabeça?

Sim, aqui, foi um corte bem grande.

Não quer ou não deseja saber o nome do seu mal. O que é um sintoma de sua antiga inteligência: ele faz a volta ao problema. Não sem certa dificuldade. Locomove-se com vagar, não exatamente pelo peso do seu grande corpo, pelo fardo que sua cabeça arrasta, como uma grande cauda de dinossauro. Não por isso. Ex-jogador de vôlei, seus músculos conservam uma boa elasticidade, revelada no levantar-se e no sentar-se em cadeiras que, ficando abaixo dos seus joelhos, não lhe arrancam aparente esforço, físico. Mas a impressão que fica é a de uma vez determinado a sentar-se numa cadeira, no instante seguinte o seu rosto transparece não saber para onde exatamente o seu corpo vai caindo. Ao mesmo tempo, essa lacuna entre dois instantes vexa-o, logo a ele, que sempre foi tão cioso de sua competência intelectual. Então o seu movimento, uma vez deflagrado, não titubeia, é reto e contínuo, mas movimento de uma sombra em câmera lenta, o que lhe deixa no rosto um ar de desalento. Ele muito pensa antes de tomar uma decisão, e depois que a toma, não sabe mais que decisão foi tão maduramente pensada. É penoso. Seria cômico, se no exato momento em que se mostra tão frágil ele vestisse a máscara de um grande homem de empresa. Mas não, a sua fraqueza reveste-se de afabilidade, de uma certa urbanidade no trato, que me parece a antiga marca da timidez da infância, misturada ao poder do rebenque dos últimos tempos. Não sei se mais poder ou timidez, se urbanidade ou condescendência.

Oferece-me cigarros, de baixo teor. Se ele fosse maldoso, se ele tivesse o martírio e a sensatez da desconfiança, esse gesto significaria: “estou num elevador, o cabo partiu-se, mas o impacto com o chão ainda não chegou – fumemos, vamos aproveitar este breve instante”. Ou então, “estamos todos num sanatório; a esse mal que me atinge você não é imune – sirva-se também, por favor”. E fuma, ou melhor, arremeda o hábito, pois realiza uma fila de cigarros sem tragar, um após o outro, sem avanços ou recuos no que conversa. É como se o objeto dos seus diálogos fosse uma esfera imóvel, abordada e escorregada em diferentes ângulos. Só e somente a mesma esfera, em todos os ângulos. Sua única preocupação é a doença, não o mal, o nome do mal, mas sua doença, a doença que ele contornando pôs em lugar do mal.

O corte foi grande, aqui, ele diz, contornando, alisando e tateando o couro cabeludo com os seus dedos grandes pelo caminho da incisão, que meus olhos evitam.

As palavras parecem vir num esforço de articulação do queixo, pois chegam bem distintas, quase divididas em sílabas. Novamente o que é mais íntimo poderia ser atribuído à superfície. Ele não responde de imediato, é como se conversasse numa língua que não é mais a sua, porque parece traduzir o que ouve e verter o que responde. Ele não tem iniciativa na conversa, ele não indaga. Há silêncios, no ir e vir. As palavras não fluem, nem sequer jorram de uma só vez, elas vêm caindo em cubos de sílabas, autônomos, sem um visível fio de relação. No entanto, em seu conjunto, ainda não perderam o nexo. Antonio ainda não é estúpido.

Você tem dificuldade em pensar?

Responde que não, mudamente. Silêncio. E depois:

Júlio, o meu médico, diz que eu vou ficar bom. Demora... aos poucos... fico bom.

Vai ficando evidente para mim que ele ainda não me reconhece.

Tonho, você se lembra?

Ao ouvir o seu apelido, ele me encara, como se estivesse finalmente acordando.

Tonho. Era assim, quando eu menino.

Tenho vontade de lhe fazer recordar aquela tarde em que me perguntou se eu já era homem. Mas na sua posição, tão distante, na sua doença, não cabe. Numa roda de conhaque e cerveja, num boteco, num reencontro, caberia. Mas agora... que diabo eu vim aqui fazer, que miséria eu estou fazendo em pedir emprego a um homem que tem uma bomba de pus latejando no cérebro? Sim, mas eu estou precisando, sejamos de uma vez práticos. Não recuo. “Afinal, não éramos amigos?”.

O instinto me ensina: doentes assim, próximos do fim, ficam muito sensíveis a recordações, ao sentimento. Puxo uma ensebada carteira de identidade, com a foto de quando eu tinha dezoito anos.

Tonho, você se lembra? Eu era assim.

Ele olha a antiga foto, e se ausentando de minha presença na sala, ele olha minha antiga face, a do menino que era incapaz de tomar uma atitude de cálculo frente até mesmo a um inimigo.

Sim. Eu me recordo. A bochecha. O queixo. Você-era-meu-amigo.

Deixa a carteira sobre a mesa e passeia os olhos, alheado. Guarda-se mudamente.

Tenho vontade de lhe dizer, “como éramos burros, Antonio: o amigo do meu amigo é meu amigo, o amigo do meu inimigo é meu inimigo, o inimigo do meu inimigo é meu amigo. Como éramos burros, Antonio! Quem de nós dois, hoje, é menos amigo?”

Sinto que deveria existir alguma lei que impedisse um desempregado pedir um favor a um ex-amigo que tem câncer.

Eu me levanto, enraivecido. Nada mais tenho a lhe pedir. Ele me estende a mão, frouxamente.

Apareça...

No portão, num movimento brusco, vem-me à memória uma antiga lição, que recitávamos no Ginásio Ipiranga:

“Substantivos concretos são os que designam seres de existência real. Exemplos: livro, cadeira, pedra.”

E substantivos abstratos, Tonho?

Ah, abstratos são os substantivos que designam seres de existência imaginária: justiça, liberdade, amizade.

* Escritor e jornalista

3 comentários:

  1. Passamos uns pelos outros tão rapidinho que, muita vez, nem dá tempo de dizer adeus. Nos perdemos por aí com novo nome, nova cara ... O mimetismo (ou a deformação) para nos adequarmos a novas circunstâncias. E tudo na afobação, que a vida é de bate-pronto, não dá pra passar a limpo. Dói, dói, dói a impossibilidade de permanência. Aliás, a própria vida é substantivo abstrato! Parabéns por esta crônica de distância e solidão, mestre Urariano - vc que é tão concreto!

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  2. A imagem de "um pus latejando no cérebro" foi forte para designar um câncer cerebral. Sei por experiência pessoal, através da minha mãe, o que vem ser isso. Ela não teve chance e morreu em 32 dias aos 68 anos. É chocante. Não deu tempo nem de pensar que foi um cabo rompido de um elevador. Não deu tempo de fumar um último cigarro e nem de lembrar coisas antigas para fazer jorrar saudades. Não deu Urariano.

    Destaco: "É como se o objeto dos seus diálogos fosse uma esfera imóvel, abordada e escorregada em diferentes ângulos." Boa maneira e contar como o assunto não flui quando se tem um tumor no cérebro.

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  3. Amigos, estou sem meu micro agora, que um vírus desgraçado corrompeu. Falo de uma Lan, enrolado mais que se estivesse em lã.
    Grato, Daniel, por teu comentário cheio de observações de lince. Grato, Mara, por teu saque de médica e escritora.
    Abração.

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