terça-feira, 21 de abril de 2009




Quem deve a Deus, paga ao diabo


* Por Risomar Fasanaro

Por que não Afogados da Ingazeira? Naquele estirado de mundo lá na terra dos índios cariris vindos da Amazônia enterraria meu cansaço, minha tristeza bissexta e passaria a viver em plenitude minha alegria de viver e de escrever.

Ingazeira. Era assim que gostava de chamá-la. Conservaria ainda o chão batido com vassoura de capim? Haveria ainda o cheiro de ervas entrando comprido na alma da gente?. Tudo aquilo morava em minha memória, com a plenitude do vazio. Faz tanto tempo isso...O mistério havia se enredado nas pessoas, nas casas, nos caminhos.

Diziam naquele tempo que seu Gonçalo tinha encontrado uma botija perto do rio onde todos nós tomávamos banho ao entardecer. Eu mesma tinha ido sozinha até à margem procurar ver se havia alguma marca, algum sinal que denunciasse a retirada da botija. E vira, eu vira a terra remexida, mas que não conseguira de todo esconder a marca retangular da caixa, (arca?) que de lá saira. Alguns não acreditavam, mas ninguém me dissesse que fora imaginação minha. Eu vira. Mas nada contara a ninguém. Aprendera, desde que ali chegara, que os mistérios aconteciam, mas deveriam permanecer em segredo. Outros mais tinham acontecido, mas não agora irei contá-los.

O filho caçula lançara o rei sobre o xadrez da toalha. Segredo. Ouro puro na moeda antiga, com a efígie do imperador. A revelação do menino não agradou à família.

Historias de menino... Invencionice... Imagine, Gonçalo achar botija... Que bom seria!... Cercado, ele se viu sob os olhares de censura das paredes, dos telhados que o limo escurecera, dos guardanapos bordados a mão pela mãe, nas tardes em que ficava no alpendre do casarão, conversando com a tia Estelita.

O menino trancou-se, não falou mais sobre a botija e quando lhe perguntávamos ”mas você disse...” quem, eu? Não. Eu disse que bom se papai encontrasse uma botija...

Há vários meses que corria aquela historia: Gonçalo sonhara com uma botija cheia de moedas de ouro, mas não tinha coragem de ir lá, procurar, cavar. O sonho se repetiu três vezes. Nele um padre lhe dizia: toma, é teu! Não foi, nem contou a ninguém.

Ali os segredos encharcavam as paredes. Aquele lugar deveria se chamar Encantado.

Eu era de fora. Estava ali como professora naquela fazenda, e não consegui desvendar os muitos mistérios que ali havia. Mas vi aquele engenho que vivera sempre em crise, prosperar do dia pra noite, depois da historia da botija e da viagem do dono da fazenda ao Recife, resolver negócios de banco...

Um dia, não gosto de falar disso, me soa como traição, mas vi, com esses olhos, uma moeda antiga, muito, muito antiga, de ouro. Os filhos de Gonçalo brincavam com ela. Quando viu aquilo, Corália imediatamente tomou a moeda e foi guardá-la no quarto sob as reclamações dos meninos. Disfarçadamente, ela continuou conversando comigo como se nada houvesse acontecido. Perguntar, eu? Jamais.

O engenho cresceu muito. Seu Gonçalo mandou construir uma vila de casas para os trabalhadores. Eles pagavam um aluguel barato, quase nada, me dizia Corália.

Entre os trabalhadores, um havia que se entregava à bebida e faltava muito ao trabalho. Ora, as casas eram apenas para os trabalhadores do engenho, e se esse não cumpria suas funções... A mulher do dito estava muito, muito doente. Vivia com umas gasturas no estômago e a espinhela caída. O cabra, marido dela, vivia feito doido vendo a mulher gemendo de dor dia e noite, os filhos jogados e, ainda por cima, ela esperando outro. Talvez até por isso, ele não tivesse cabeça para trabalhar. Médico só no centro da cidade, distante do engenho. Como levá-la?

Foi quando, para completar a desgraça, seu Gonçalo pediu a casa, porque eles estavam ocupando o lugar em que poderia morar outra família, dissera ele ao homem. Mas o homem nem ligou. Lá estava, lá ficou. Seu Gonçalo pediu e repediu, os dias se passavam e ele não saia. E tinha graça, sair pelos eixos do mundo com a mulher doente e três filhos...

-Destelhem a casa!

A ordem de seu Gonçalo veio como seta do destino. E o dia chegou. Mané-sem-medo, um dos homens de confiança de seu Gonçalo, juntou mais dois homens e em poucos minutos a casa estava completamente destelhada.

O homem a tudo assistiu com os olhos baixos e o chapéu na mão. Não mexeu um dedo. Em silêncio se manteve até que a última telha fosse derrubada. A mulher gemendo, chorava abraçada aos filhos, sentada na cama desarrumada, ao relento.

Seu Gonçalo, do alto do seu cavalo, um puro-sangue que adquirira recentemente em uma feira de Agropecuária, em Garanhuns, tudo acompanhou. Já ia saindo depois de tudo consumado, quando ouviu a voz do homem, que surpreendentemente não bebera uma gota de álcool naquele dia:

-Muito bem, seu Gonçalo. O senhor destelhou minha casa, mas anote aí: é a última vez que o senhor destelha a casa de um homem.

Triste é quando os anjos dizem amém. O que se fala, acontece. Quem deve a Deus paga ao diabo.

A vigilância foi redobrada. Seu Gonçalo não saía de casa sem um ou dois capangas zelando por sua segurança. Mas aos poucos vendo que nenhum vulto se escondia nas sombras, a segurança foi ficando menos rigorosa. Ele achou que o homem desistira da vingança.

Três meses depois ele começou a sentir uns achaques, umas dores fortes que se espalhavam pelo corpo e que não o deixavam dormir. Noites inteiras relembrando aquele pobre homem com o chapéu na mão, os pés descalços, humilhado. Tivesse lhe dito uns desaforos e não doeria tanto. O silêncio sim. A visão daquela mulher humildemente vestida, agarrada aos filhos. Jamais aquela cena lhe sairia da cabeça.

Consultou vários médicos no Recife e os exames nada acusavam. Viajou para São Paulo, examinado por vários especialistas, nos melhores hospitais, e teria ido aos Estados Unidos, mas não foi. Mas não quero contar antes, o que só depois aconteceu.

Uma semana depois do destelhamento, Bila, que era filha de escravos, e que já trabalhava na casa daquela família havia mais de vinte anos, estava lavando roupas quando ouviu uma algazarra das crianças brincando no quintal: mata, não mata, mata!...O barulho era tanto que ela resolveu ir ver o que eles faziam. Armados de pau, os cinco filhos do seu Gonçalo jogavam um enorme sapo de um lado pro outro. E o mais estranho: o animal não emitia nenhum ruído.

Ela tomou as armas das crianças e chegou bem perto do animal para ver se poderia ajudá-lo. Estranho... notou que o sapo estava com os olhos fechados, e chegando bem perto, viu que ele estava com os olhos e a boca costurados com uma linha vermelha.

Bila tomou o sapo entre as mãos, e com todo cuidado, descosturou os olhos, a boca, e viu dela saltarem três bolas pretas e quatro vermelhas. Coitada da pessoa para quem foi feito esse catimbó... murmurou.

Dirigiu-se às crianças e ordenou: não mexam com este sapo. Vou colocá-lo aqui nesse caixote, pois ele não pode morrer. Depois que ele melhorar vou desmanchar esse catimbó.

Mas criança tem parte com o demo, sempre soube disso. Assim que Bila se distraiu, eles tiraram o sapo do caixote e com pauladas o mataram.

A partir dali, seu Gonçalo foi piorando cada vez mais. Os exames continuavam não acusando nada, mas não houve medicina nem benzimento que o salvasse. Seu Gonçalo morreu seis meses depois do destelhamento da casa.

O engenho? Dele hoje já nada mais existe. Os filhos não gostam de mato, diziam. Não querem viver em Afogados da Ingazeira. Só gostam do Recife, e você sabe, o olho do dono é que engorda o boi.

Dizem que ainda há outra botija lá, entre as duas mangueiras que restaram do outro lado do rio. Ninguém nunca teve coragem de ir até lá cavar e procurar. De uns tempos pra cá, venho pensando em morar em um lugar afastado desse mundo consumista, onde eu possa viver. Quem sabe crio coragem e vou viver lá? Quem sabe não desenterro aquela botija? Será que o progresso desenfreado já chegou lá também? É... Por que não em Afogados da Ingazeira?

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

2 comentários:

  1. Pernambuco é sua botija, Risomar. Jaboatão, o seu tesouro. Quando cansar de ser pobre, venha ser rica em sua terra. Abraço fraterno.

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  2. Ah, Urariano
    Quem me dera eu pudesse! ainda que vivesse em uma casinha humilode, com o estritamente necessário, seria mais feliz, com certeza.
    Obrigada, Amigo!
    Risomar

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