domingo, 26 de abril de 2009




As verdadeiras necessidades do homem

* Por Henry David Thoreau

Quando consideramos aquilo que, para usar as palavras do catecismo, é a principal finalidade do homem, e em que consistem as verdadeiras necessidades e recursos da vida, tem-se a impressão de que os homens elegeram deliberadamente seu habitual medo de viver porque o preferiram a qualquer outro. No entanto, pensam honestamente que não há opção, se bem que espíritos altivos e saudáveis dêem-se conta de que o sol nasce todas as manhãs e de que nunca é tarde demais para abrir mão de preconceitos. Afinal, nenhum modo de pensar ou agir, por mais consagrado que seja, pode merecer cega confiança.
O que, hoje, todos aceitam, louvando ou em silêncio, pode revelar-se amanhã como um equívoco, mera fumaça de opinião que alguns tomaram por nuvem que espargiria chuva fecundando os campos. O que as pessoas mais velhas dizem que não podeis fazer, tentam e acabam por conseguir. Fiquem os velhos com as velharias e os novos com as novidades.
A natureza e a vida do homem são tão variadas como nossas numerosas constituições. Quem dirá o que a vida reserva a cada um? Haveria milagre maior do que sermos capazes de enxergar com os olhos de outrem, por um segundo que fosse? Numa hora, viveríamos em todas as idades do mundo, em todos os mundos das idades.
A maior parte das coisas que meus semelhantes consideram bens, creio no fundo da alma que são más, e se de alguma coisa me arrependo é provável que seja do meu bom comportamento. Que diabo se apossou de mim para que me comportasse tão bem?
Penso que podemos, sem correr riscos, ser bem mais confiantes, abrindo mão de tanta atenção conosco e aplicando-a alhures. A natureza está bem ajustada, quer à nossa fraqueza, quer à nossa força. A incessante ansiedade e tensão de alguns é quase uma forma incurável de doença. Temos a tendência de exagerar a importância de qualquer trabalho, contudo, quanto deixamos de fazer, ou o que aconteceria se adoecêssemos?
Como nos fiscalizamos, determinados a não viver pela fé sempre que podemos evitá-la! O dia inteirinho de prontidão, quando chega a noite rezamos as orações sem ânimo e nos entregamos a dúvidas. Somos completa e sinceramente forçados a viver reverenciando nossa vida e negando a possibilidade de modificação. Dizemos ser esta a única maneira, mas há tantas quantos os raios que podem ser desenhados a partir de um centro.
Toda modificação é um milagre a contemplar, mas um milagre que ocorre a cada instante. Confúcio disse: “Saber que sabemos o que não sabemos e que não sabemos que não sabemos, eis o verdadeiro saber”. Quando um homem conseguir com que um fato da imaginação se torne um fato do seu entendimento, prevejo que todos os homens terminarão por estabelecer suas vidas sobre essa base.
Seria vantajoso, mesmo em plena civilização materialista, viver uma vida primitiva no meio do mato, nem que fosse para aprender quais são nossas necessidades básicas e que métodos foram empregados para obtê-las, ou quem sabe dar uma olhada nos livros antigos de contabilidade mercantil, para ver o que é que as pessoas costumavam comprar nas mercearias, o que era armazenado, enfim, quais os artigos mais elementares, visto que o progresso pouco influenciou as leis essenciais que regem a existência do homem, pois nossos esqueletos, provavelmente, não se distinguem dos de nossos antecessores.
Com a expressão “coisas necessárias à vida” designo o que quer que seja que o homem obtém por esforço próprio, e que desde o início, ou pelo uso contínuo, tornou-se tão importante para a vida humana que nenhum ou poucos até hoje tentam viver sem eles, seja por selvageria, pobreza ou filosofia.
Neste sentido, para muitas criaturas, não há senão uma coisa indispensável: a comida. Para o bisão da pradaria bastam pequenos trechos de pasto apetecível, mais água para beber, a menos eu ele procure o abrigo da floresta e a sombra da montanha.
Nenhum ser bruto requer mais que comida e abrigo. Quanto ao homem e em se tratando deste clima, as coisas necessárias à vida podem ser criteriosamente agrupadas sob os itens: alimento, abrigo, roupa e combustível, porque só depois de termos assegurado todos eles estaremos em condições de enfrentar, com liberdade e perspectiva de sucesso, os verdadeiros problemas da vida.
O homem inventou não apenas casas, mas roupas, alimentos elaborados e possivelmente, da descoberta casual do calor do fogo o seu conseqüente uso No começo um luxo, nasceu a atual necessidade de aquecer-se. Observamos que gatos e cães estão adquirindo essa segunda natureza. Abrigados e vestidos de maneira adequada, mantemos naturalmente o calor interno, contudo o excesso desses elementos ou de combustível, aumentando o calor externo sobre o interno, não terá ocasionado o surgimento da arte culinária?
O naturalista Darwin conta que em sua equipe os homens bem-vestidos sentiam frio sentados junto a uma fogueira, enquanto os selvagens da Terra do Fogo que se encontravam nus à distância, para surpresa geral, suavam em bicas, padecendo tal “churrasco”.
Fala-se, também, que o nativo da Austrália anda nu sem maiores problemas, ao passo que o europeu tirita em suas roupas. Será impossível combinar a resistência física dos selvagens com a intelectualidade dos civilizados? Segundo Liebing, o corpo humano é uma estufa, sendo o alimento o combustível que mantém a combustão interna dos pulmões.
Comemos mais quando faz frio e menos quando faz calor. O calor animal resulta de combustão lenta; a doença e a morte ocorrem quando a combustão é muito rápida, quando falta combustível, ou o fogo se extingue por defeito na corrente de ar. Claro que não se deve confundir o calor vital com o fogo, aqui empregado como analogia. Do que foi enumerado deduz-se, portanto, que as expressões “vida animal” e “calor animal” são quase sinônimas, pois se o alimento pode ser visto como o combustível que mantém o fogo dentro de nós – e o combustível serve unicamente para preparar aquele alimento ou aumentar o calor corporal como aditivo externo – o abrigo e a roupa também servem apenas para reter o “calor” assim gerado e absorvido.
A grande necessidade para nosso corpo consiste, pois, em se conservar aquecido a fim de manter o calor vital interno. A que trabalheira não nos entregamos, não só por conta da alimentação, vestuário e moradia, mas também com as camas, que são nossas roupas noturnas, pilhando ninhos e assaltando pássaros para com suas penas preparar esse abrigo dentro de outro abrigo, tal qual a toupeira, que faz a caminha de capim e folha no fim da toca!
O pobre costuma queixar-se do frio que anda pelo mundo e ao frio físico e ao social atribuímos grande parte de nossos males. Em alguns climas o sol proporciona ao homem uma espécie de vida bem-aventurada. O combustível, exceto para cozinhar comida é desnecessário. O sol é o próprio fogo, abundância de frutos amadurecendo sob seus raios, o alimento em geral variado e acessível, o vestuário e a moradia totalmente ou quase dispensáveis.
Nos dias de hoje neste país, conforme julgo por experiência pessoal, uns poucos utensílios, uma faca, uma enxada, uma pá, um carrinho de mão etc., e parao estudioso, lâmpada, artigos de papelaria e acesso a alguns livros, bastam como coisas necessárias e podem ser comprados por uma ninharia. Contudo, alguns insensatos mudam-se para o outro lado do globo, para regiões bárbaras e insalubres onde passam de dez a vinte anos dedicando-se aos negócios, com o objetivo de poderem viver – isto é, manterem-se confortavelmente aquecidos – e um belo dia morrer de volta à Nova Inglaterra. Os ricos que vivem no luxo não se mantêm confortavelmente aquecidos mas desmesuradamente superaquecidos e como sugeri antes, são assados, “à la mode”, é claro.

Nota: Trecho extraído de um ensaio do livro “Walden, ou a Vida nos Bosques”.

* Ensaísta, poeta, naturalista e filósofo norte-americano. Nasceu em 12 de julho de 1817 em Concord e morreu em 6 de maio de 1862. É considerado pioneiro da desobediência civil. Seus principais livros são: “Desobedecendo”, “Walden”, A week on the Concord and Merrimac Rivers” e “The Maine woods” .

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